Não me recordo se escrevi algo em torno da pandemia que nos assola. É um bombardeio de informações tão gigantesco que não quero ser mais um para complementar a avalanche de notícias preocupantes. Porém, fiquei impressionado com as incríveis semelhanças entre o momento conturbado que passamos e a devastação que a gripe espanhola causou em 1918. No livro “A Bailarina da Morte – A gripe espanhola no Brasil”, a antropóloga Lilia Schwarcz e a historiadora Heloisa Starling (que já haviam escrito juntas o brilhante documento “Brasil, uma biografia”) detalham o caos que se instalou no país após a moléstia naquele período. Algumas correlações são inacreditáveis.
A peste surgiu em plena Primeira Guerra Mundial, no solo europeu. Não bastavam os bombardeios e artilharias pesadas de lado a lado das trincheiras, um inimigo invisível demolia as tropas. Milhares de soldados feneciam após uma forte virose. Após constatarem o grande mal, o drama aumentou. Cidades e vilas foram varridas pela gripe. As primeiras notícias que chegaram por aqui teriam sido fornecidas pelos jornais espanhóis, daí o “apelido”. Na época, norte-americanos e alguns brasileiros achavam que o vírus era uma arma química fabricada pelo laboratório farmacêutico Bayer, espalhada por agentes secretos alemãs nos portos de cidades inimigas. Não faltaram conspiracionistas no Brasil para também formular teorias sobre o desenvolvimento artificial do coronavírus em laboratórios chineses. No contexto de guerra mundial, até que podemos dar um crédito. Mas cenário “comunista globalista” é uma viagem olavética demais! A responsabilidade por um mal é sempre atribuída ao outro, na busca de bodes expiatórios, dizem as pesquisadoras no livro. No século XIV, por exemplo, a Igreja católica colocou a culpa da epidemia de peste bubônica nos judeus. Muitos foram queimados na fogueira.
A chegada da enfermidade por aqui se deu por via marítima. O transatlântico “Demerara” aportou em Recife com alguns contaminados e logo após se espalhou pela capital pernambucana. O mesmo navio desembarcou passageiros em Salvador, Rio de Janeiro e Santos. Porto Alegre, Belém, e Manaus foram capitais que também receberam embarcações com doentes. Apesar de serem inspecionados, não houve quarentena dos ocupantes desses navios. Curioso que em março de 2020 um transatlântico vindo do Chile passou por Argentina, Uruguai, Florianópolis, Santos, Rio de Janeiro e Salvador. Quando chegou em Recife, dois passageiros relataram mal estar e dificuldade em respirar. Não deu outra: COVID. Com uma pandemia acontecendo, as autoridades portuárias desses locais permitiram desembarques. Assim como em 1918 - com todos os avisos! Alguns especialistas disseram, naquela época, que o país era muito quente e impediria a proliferação do vírus...
A prevenção era a mesma da atual: higienização das mãos, uso de máscaras, distanciamento social. As informações, estampadas pelas autoridades nas ruas, eram pra evitar a disseminação de “boatos falsos”, ou seja, nossa famigerada fake news!! O problema era a falta de saneamento básico e de água. Várias cidades haviam passado por reformas urbanas e atirado as populações miseráveis em subúrbios distantes. A calamidade bateu em cheio nessa gente. Em praticamente todas as capitais houve a negação do espalhamento da gripe pelos jornais, que minimizavam o perigo afirmando que os casos surgidos eram “benignos”, visto que havia campanhas políticas e alguns médicos eram candidatos. Essa disputa empurrava a verdade por dias e assim quando não dava mais pra esconder o número de enfermos, a gravidade vinha à tona. O período de incubação era curto: cerca de dois dias. Os sintomas eram os mais diversos. Dor de cabeça, diarreia, vômitos sanguíneos, surdez, hemorragias e sufocamento (casos mais graves). Cronistas relatavam que faltavam caixões pra enterrar tanta gente e não era raro encontrar cadáveres pelas ruas. Doentes caiam de cama pela manhã e a tarde vinham a óbito. Famílias inteiras sucumbiram.
Duas grandes “coincidências”: Manaus foi duramente atingida. O sistema de saúde colapsou tão rapidamente que barcaças que serviam de transporte pelo Rio Amazonas foram utilizadas como hospitais improvisados. Ainda é forte em nossa memória o drama da COVID na capital do Amazonas. Se em 1918 havia certo desconhecimento, como um século depois algo se repete da mesma forma?
O outro fato, no entanto, é alarmante. Um composto químico era utilizado como “cura milagrosa” contra a gripe espanhola: o sal de quinino. O quinino é uma porção de um medicamento chamado... CLOROQUININO! E sua produção servia pro combate à... MALÁRIA! É ou não é espantoso??? Os governantes, no entanto, não recomendavam esse remédio. Já em 2020... A aplicação da hidroxicloroquina foi orientada pelo governo Trump há quase um ano. O pupilo-presidente adotou com veemência. Inacreditável...
A gripe espanhola era muito mais agressiva, e passou rápido. Chegou em setembro de 1918, varreu o país, mas a partir de janeiro de 1919 aconteciam apenas alguns surtos (sobretudo em Manaus) – tanto que o carnaval daquele ano transcorreu normalmente. O número total de óbitos é estimado em 35 mil, embora muitas subnotificações tenham ocorrido. Segundo índices demográficos do censo de 1920, a população era pouco mais de 30 milhões de habitantes. No momento que escrevo, os casos fatais da COVID são oito vezes maiores, transcorridos um ano, num país de 212 milhões de pessoas. O descaso das autoridades em 1918 foi latente. O desprezo do presidente em 2021 parece ser política de estado...
FONTE:
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. A bailarina da morte – A gripe espanhola no Brasil. Companhia das Letras, São Paulo: 2020, 476 pág.
Comentarios