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Foto do escritorMirian Hapuque

ENTRE DESTINO E INSTINTO - MOTEL DESTINO




Mesmo após um longo dia de trabalho, ao me sentar na sessão de estreia de “Motel Destino”, não pude deixar de ser arrebatada pela complexidade e profundidade dessa nova obra de Karim Aïnouz. Desde a recepção calorosa em Cannes, o filme tem gerado discussões intensas entre os espectadores, evidenciando um contraste entre a aclamação crítica e a recepção do público. Esse desacordo, a meu ver, é um reflexo direto da intrincada teia de significados que Aïnouz tece ao longo do filme.


Karim Aïnouz sempre nos acostumou a narrativas densas, carregadas de questões sociais, onde os conflitos emergem com força. Em “Motel Destino”, essas questões estão presentes, mas há muito mais em jogo. Ao observar as camadas que compõem a história, percebemos que a obra transcende a superfície, tocando em elementos simbólicos e espirituais que nos convidam a uma reflexão mais sutil.


O título, “Motel Destino”, já sugere uma dualidade intrigante. Se por um lado o motel remete ao denso, ao físico, ao lugar de passagem e, por vezes, de encontros furtivos, o destino, por outro, nos fala do sutil, do incontrolável, das forças invisíveis que guiam nossas vidas. Essa tensão entre o tangível e o intangível perpassa toda a narrativa, criando um jogo de significados que vai além do óbvio.


Um dos aspectos mais fascinantes dessa obra é como Aïnouz utiliza a presença de animais em cena para explorar os instintos primitivos dos personagens, especialmente em relação ao sexo. Ao longo do filme, vemos animais como cobra, galinhas, gatos, aves, jumentos e cavalos, que não apenas compõem o ambiente, mas também simbolizam esses impulsos básicos que movem os seres humanos. E aqui, vale destacar a complexa relação entre o personagem Heraldo (Iago Xavier) e o jumento.


Heraldo, vindo de uma classe social que muitas vezes é forçada ao apelo dos instintos mais primitivos e básicos como forma de sobrevivência, é magistralmente simbolizado através da interação dele com o jumento. Na cena em que Heraldo coloca sua testa contra a do animal, ação que pode parecer, à primeira vista, uma simples expressão de afeto, mas que é carregado de significados mais profundos. Nós dando conta de uma conexão que vai além da superfície, refletindo um reconhecimento mútuo animal versus humano dos instintos de sobrevivência e de uma compreensão silenciosa da luta por existência imposta de modo diferente para ambos.


A utilização dos animais em cena, como já observei anteriormente, não é meramente decorativa ou para criar uma atmosfera rústica; eles estão ali para reforçar a narrativa de que, no fundo, todos somos guiados por esses impulsos primordiais. No contexto de um motel, um espaço que já é por natureza carregado de conotações sexuais e de transgressão, a presença desses animais intensifica a sensação de que o filme está nos levando a um mergulho profundo nos aspectos mais básicos e, por vezes, inconfessáveis da natureza humana.


Além dos animais, o uso das cores é uma ferramenta crucial que Aïnouz mete mão para aprofundar essas camadas simbólicas. A paleta de cores escolhida no filme não é acidental; ela carrega significados que se entrelaçam com a narrativa e  arquétipos esotéricos. Em várias cenas, predominam o amarelo e o azul, cores que, dentro de certas tradições esotéricas, têm associações específicas. O amarelo, muitas vezes relacionado ao chakra do plexo solar, está ligado à identidade, ao ego e ao poder pessoal. No filme, essa cor pode ser vista como uma representação dos conflitos internos dos personagens, suas lutas pelo controle e pela afirmação de sua identidade em um mundo caótico.


Já o azul, associado ao chakra da garganta, é a cor da comunicação, da verdade e da expressão. Quando o azul domina a tela, pode estar indicando momentos de introspecção ou de expressão profunda, sugerindo uma busca por verdade ou uma necessidade de articular algo que está reprimido. A combinação dessas cores aponta para a dualidade dos personagens, que estão constantemente oscilando entre a necessidade de afirmar seu poder e a busca por uma expressão autêntica em um ambiente opressor. Não à toa as roupas de Heraldo e de Dayana (Nataly Rocha) se alternam dentre essas cores.


Por outro lado, as cores vermelha e laranja aparecem frequentemente em cenas de tensão, e suas associações espirituais são igualmente poderosas. O vermelho, ligado ao chakra raiz, está associado à sobrevivência, ao instinto e à segurança física. É a cor dos desejos carnais, das paixões e, em muitos momentos, da violência. O laranja, por sua vez, está relacionado ao chakra sacral, que governa a sexualidade, a criatividade e as emoções. Essas cores, quando usadas em conjunto, criam uma atmosfera de energia intensa, onde os desejos mais primordiais estão sempre à flor da pele.


Essas associações não apenas enriquecem a experiência visual do filme, mas também intensificam o sentimento de que os personagens estão sendo guiados por forças que eles mal compreendem. No Motel Destino, os instintos primitivos não são apenas temáticos, mas são expressos visualmente através de uma paleta que constantemente nos lembra da presença desses impulsos subterrâneos.


Entre esses personagens, Fábio Assunção brilha na pele de Elias, uma figura que poderia facilmente cair no estereótipo do “tiozão do pavê bolsonarista”. No entanto, Aïnouz e Assunção evitam esse clichê, criando um homem que, apesar de seu discurso reacionário, é surpreendentemente complexo e, em momentos chave, até simpático. Elias nos desafia a enxergar além do óbvio, a reconhecer as contradições e a humanidade em alguém que, à primeira vista, parece ser apenas mais um defensor de uma ideologia que nos repugna. Essa ambiguidade moral, que nos faz questionar nossas próprias reações, é um dos grandes méritos do filme.


Outro elemento que merece atenção é a forma como a homoafetividade de Elias é trabalhada no filme. Desde o início, há uma sensação de que sua homoafetividade é algo não resolvido, um aspecto que paira no ar, carregando a narrativa de uma tensão latente. Aïnouz não a trata de forma explícita, mas a presença dessa dinâmica confere ao personagem uma complexidade adicional, um conflito interno que reflete a dualidade entre o desejo reprimido e a imagem que Elias projeta ao mundo.


Essa tensão interna é reforçada pelos elementos visuais, como as tatuagens que os personagens carregam. Elias traz no corpo a serpente Kundalini, um símbolo esotérico profundamente ligado à espiritualidade e ao despertar da energia primal, comumente associado a práticas esotéricas e ordens místicas, que por uma série de motivos o seus praticantes estão mais associados a classe média brasileira. A Kundalini, também, com seu significado de ascensão espiritual, está intrinsecamente ligada à ideia de destino, sugerindo que a jornada de Elias é também uma busca por algo mais profundo, por uma resolução que talvez ele mesmo não compreenda completamente.


Por outro lado, Heraldo carrega no pescoço uma tatuagem do Exu de Caribé, uma figura central no Candomblé, especialmente venerada pelas camadas mais populares. Exu é o orixá mensageiro, aquele que transita entre os mundos, conectando o físico e o espiritual, o humano e o divino. Assim como a serpente Kundalini, Exu também se relaciona com o destino, mas de uma forma mais terrena, mais próxima das realidades vividas pelas pessoas comuns.


Ao colocar essas duas figuras lado a lado, Aïnouz sugere um diálogo entre o esotérico e o popular, entre as classes sociais e suas respectivas visões de mundo. E, ao fazer isso, ele não apenas conecta os personagens a diferentes camadas sociais, mas também sugere que, independentemente de suas origens ou crenças, todos estão de alguma forma ligados pelo mesmo fio invisível do destino.


Um dos grandes méritos da obra, que também merece destaque, está nas cenas de sexo, que vão na contramão da crescente corrente puritanista que tem dominado o cinema atual. Em tempos em que o sexo é cada vez mais higienizado ou até mesmo evitado nas telas, o filme de Karim Aïnouz ousa trazer de volta a sensualidade de forma crua e real. Ele nos lembra que o sexo, com todas as suas imperfeições, é uma parte intrínseca da experiência humana. As escolhas de ângulos de câmera e fotografia desromantizam o ato, rompendo em alguns momentos com a ideia de perfeição e oferecendo uma visão mais autêntica e humana. Isso, inclusive, me faz questionar: quando nos tornamos tão puritanos?


Em Motel Destino, Karim Aïnouz nos convida a uma jornada que é, ao mesmo tempo, visceral e etérea, uma viagem que nos pede para olhar além das aparências, para mergulhar nas camadas mais profundas de uma narrativa que, como a vida, é multifacetada e cheia de contradições. E, ao fazer isso, ele nos oferece não apenas um filme, mas uma experiência que ressoa, que nos desafia a pensar, a sentir, e, sobretudo, a questionar o que realmente guia nossos passos.


Embora eu não considere “Motel Destino” um filme nota 10, é inegável que ele deixou uma marca profunda na minha memória. É uma obra que merece ser vista, pois tem muito a dizer e, como toda grande obra, dialoga de maneira única com cada espectador. Esta foi a minha percepção, mas acredito que outros possam descobrir camadas ainda mais ricas e complexas. E é exatamente isso que torna esse filme tão especial.

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2 Comments

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Rated 5 out of 5 stars.

Gostei muito do seu texto e os detalhes. Mas para mim o filme não foi tão poderoso. E eu morro de expectativa com os filmes de Kariim. Mas dessa vez, não bateu rsrs.

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Rated 5 out of 5 stars.

Massa que você conseguiu fazer uma baita análise e aguçar a curiosidade sem nenhum spoiler :) vou prestar atenção nesses elementos quando ver o filme

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