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Foto do escritorLígia Costa

EM CASO DE ENGANO E VIOLÊNCIA, QUEBRE O VIDRO




E a moça do programa Casamentos às Cegas, hein? Até ouvir os burburinhos sobre a revelação da Ingrid Santa Rita de ter sido abusada pelo então marido, eu não tinha me interessado pela temporada. O programa é apresentado como um experimento social em que mulheres e homens têm encontros às cegas com o propósito de conhecer o seu par ideal e isolados, dentro de cabines, eles conversam sobre os seus gostos, temores, expectativas e se o papo der liga, declaram que o amor está no ar e passam para a próxima etapa que é o primeiro encontro, quando o aguardado é o pedido oficial de casamento, com beijos, abraços e juras de amor. Na maioria das vezes é assim, mas já aconteceu da estética estar aquém da expectativa e aí entornar o caldo do amor.


Siiiiiim! O interesse pela fofoca, me fez contribuir para o aumento do índice de audiência da Netflix, maratonei a quarta temporada do Casamento às Cegas, mais precisamente, assisti primeiro o último episódio, pois o que eu queria saber mesmo era sobre o abuso. Eu vi e ouvi e, como tantas outras mulheres e muitos homens também, fiquei horrorizada com a narrativa contada pela moça, até mesmo uma pálida ideia de uma pessoa ter seu corpo violado da maneira como foi descrito é de revirar o estômago e descompassar o coração.

O ato foi vil, pois violentou o físico e mais ainda, porque abalou a consciência de si que aquela mulher certamente vem construindo ao longo da vida. É isso. Vem construindo, porque mulheres negras não têm a autoconfiança confirmada desde a infância, na verdade, quase nunca isso acontece, e a Ingrid é uma mulher negra de 34 anos, mãe de duas filhas e já deve ter passado por muitas experiências de dúvida e descredito do seu valor.


Corta a cena. Na mesma semana outra notícia, a cantora Iza publica um vídeo em uma rede social em que anuncia o fim de seu relacionamento, após ter acesso às mensagens de cunho sexual trocadas entre seu companheiro e uma outra mulher. Assisti ao vídeo e segui para os comentários, que é a melhor parte da fofoca. Foi uma enxurrada de surpresa e indignação, afinal era a 10 de 10 do mundo masculino e o abalo da heterossexualidade de muitas mulheres, inclusive da minha, que dizia ter sido traída. Iza é uma mulher negra de 33 anos e não deve ter construído a sua história de autoamor de forma tranquila.

O que essas duas mulheres têm em comum? Muitas coisas. Dentre tantas, certamente vivenciaram episódios em que a inteligência, a beleza e a autoconfiança delas foram atacadas e questionadas e resistir à força da violência, minha gente, não é nada fácil. Mas acompanhando as notícias vi duas mulheres declarando que haviam se autorizado a amar. Enfim, cada uma teria o seu feliz para sempre particular.


E não, elas não erraram na escolha de seus parceiros. Não coloquemos na conta da pessoa violentada o ônus acarretado pela escolha do outro e nem quero aqui problematizar a lógica patriarcal do macho caçador, o que quero mesmo é destacar que essas duas mulheres romperam não somente com a prática do silêncio, mas rasgaram as páginas do conto de amor desejado por muitas mulheres negras.


Não ser a ficante, mas a amiga legal. Não ser a namorada, mas a do sigilo. Não ser a esposa, mas a que banca. Esses são alguns dos acordos que várias mulheres negras experenciaram ou experenciam por não suportarem a ideia de estarem sozinhas, mesmo que continuem a circular nos espaços sociais desacompanhadas, pois o histórico de abandono e solidão, em face da recorrência, já se tornou um dado na vida delas.


Só que mais violento que o abandono é o dever de ficar e ficar por muitas razões, como por exemplo, não ter a segurança de que terá um novo relacionamento, assumir para si   um dever social de entender a “carne fraca” de seu homem ou aceitar a imposição de que tem o compromisso histórico de defender homens pretos da lança afiada do racismo que aloca a sua existência no papel de violento e intenta a sua emasculação. Todas as razões, em alguma medida, fundamentaram escolhas de mulheres negras, mas a boa notícia é que, talvez Ingrids e Izas estejam anunciando a possibilidade de uma outra lógica de constituição amorosa, a de arriar as malas que vem pesando nos ombros dessas mulheres para uma organização mais justa da responsabilidade pela garantia da dignidade racial.


A comunidade negra precisa urgentemente colocar na mesa de discussão a pauta de que homens negros que introjetaram a dinâmica patriarcal de opressão dos seus pares, precisam ser responsabilizados por suas escolhas. A traição, a agressão e o engano não solidificam parcerias, ao contrário, fomentam o ódio e esgarçam laços e nessa ordem, perdemos todos nós.

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4 Comments

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Caralho! Que texto!!! Parabéns!

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Valeu, Xico!

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Cirúrgica!!

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Obrigada, Gilmara!

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