O trabalho com crianças e adolescentes nos faz pensar em diversas intervenções a serem executadas no que diz respeito aos mais diversos nichos da vida humana. Entretanto, quando o tema é educação sexual, a verdade é que ninguém sabe muito bem o que fazer. Comecemos refletindo acerca de como as pessoas vêem o tema do sexo como um tabu tão grande a ponto de entrarem em estado de alerta com o prefixo ‘’sex’’.
No texto ‘’Seu fetiche pode e o dele não?’’[1] dialogamos um pouco sobre do debate moral em torno da temática, que pôde ser trabalhado de forma mais abrangente a partir das falas de Raabe[2] no texto ‘’Mulher que gosta de dar: de quem é esse problema?’’[3]. Nesses ensaios a proposta é pensar a respeito das interseções do tema a partir das polêmicas que o acompanham.
Mas o questionamento que norteia a consideração de hoje é a quem cabe o constrangimento da responsabilidade de falar sobre educação sexual para crianças e adolescentes, uma vez que, ninguém sabe como o fazer (até porque também os faltou orientação).
Nas famílias tende a ter o enraizamento da moral religiosa; nas escolas o debate fica restrito às feiras contra IST’s; nos grupos de amigos/as o bordão do Brazino é o novo hino; na internet, a terra de ninguém (e de todo mundo), os algoritmos podem denunciar. Seria o silêncio/repressão a solução mais confortável ou a vida ensinará o que não pode ser contado?
Antes, cabe compreender que educação sexual é um processo educativo que visa orientar e esclarecer às crianças e aos jovens a respeito de assuntos do corpo, sexualidade e da prática sexual de forma orgânica e responsável.
Sim, estamos falando de orientação acerca da violência sexual no sentido de identificar e conseguir se proteger, da compreensão das mudanças e desenvolvimento do próprio corpo, da prevenção contra infecções sexualmente transmissiveis e gravidez na adolescência (um problema de saúde pública), da liberdade sexual, da urgência em desestruturar a dimensão binária de gênero, isso tudo, além da fortificação da autonomia, autoestima e autopreservação da juventude. Paralelo e aliado ao que está posto, direcionar uma abordagem de comunicação à educação sexual pode contribuir para amenizar a violência de gênero, feminicídio e LGBTfobia.
Essa dimensão sempre sofreu com a mistificação da direita conservadora evangélica, mas desde 2015 o grupo vem ganhando mais força e promovendo mais desinformação e desserviço com relação à temática e dificultando a implantação de políticas de educação sexual nas escolas (uma menção especial ao projeto ‘’Escola sem Homofobia’’, vetado em 2011 pela alienação do conservadorismo político-religioso a partir do pejorativo ‘’kit gay’’).
A sexualidade constitui nossa identidade e subjetividade e influencia em nossa autoestima e autopercepção de nós mesmes. Por esse e outros motivos, a saúde sexual é um direito humano básico (OMS, 2006). A escola é um espaço que tem sido convidado a se apropriar da discussão, principalmente por ser (e deve continuar sendo/ e se não for, deveria) um espaço seguro para a construção do diálogo responsável e consciente.
Considerando a perspectiva pedagógica da abordagem sobre educação sexual nas escolas e o poder/influência do audiovisual, duas produções contribuem para pensarmos no tema: Big Mouth e Sex Education.
A animação americana Big Mouth é uma produção interessante para pensar no amadurecimento e desenvolvimento do corpo em uma faixa de idade de 9 a 13 anos. Crianças entrando na puberdade vivenciam a excitação e o desejo de compreender as novas mudanças, de se tocarem e se relacionarem entre si, orientados pela representação dos monstros hormonais e dos sentimentos conflituosos.
A personificação das demandas hormonais intensificando as emoções nessa série é uma representação escrota muito engraçada de como a puberdade pode ser. Algo curioso é que a animação propõe discutir diversos temas - como marturbação, abusos, menstruação, homoafetividade, excitação feminina, consumo de pornografia, orgasmo, assédio, bissexualidade, entre outros - e se preocupa em contextualizar cada assunto a partir da realidade em que a/o personagem vivencia.
Por sua vez, na comédia dramática britânica Sex Education, o personagem principal vende conselhos sexuais para seus colegas do ensino médio e acaba se aventurando na empreitada de abrir uma clínica de saúde sexual em sua escola.
A série nos brinda com diversos assuntos correlatos interessantes (depressão puerperal, religiosidade, crianças assumindo função de cuidado, relações familiares conflituosas, paternidade ausente, etc.) e fecha com chave de ouro a narrativa da produção, quando chega a quarta e última temporada.
Ao final da terceira season, a escola é fechada, pois está com a fama de ser a escola do sexo, denunciando a negligência e tabu por parte dos adultos (pais e comunidade escolar) a respeito da sexualidade e prática sexual dos estudantes. Na quarta temporada, o contexto escolar parece um sonho: representado por multicorporalidades, gentileza gratuita (a parte mais difícil de acreditar), liderança jovem e atividades que visam o desenvolvimento emocional e sexual da comunidade estudantil. Seria um sonho?
No entanto, assim como na série, na vida real o contexto diferenciado e dialógico não significa a ausência de dilemas. Por esse motivo, a educação sexual é um passo significativo para a alcançar a organicidade que o debate precisa, mas não uma garantia de que inseguranças e dubiedades desaparecerão.
A família deve ser uma instituição auxiliadora nesse momento, mas o principal desafio é realmente compreender como ela poderia desenvolver esse papel se vivencia um contexto repressivo da própria geração a qual pertence.
Não é uma tarefa fácil assumir com coerência a responsabilidade pela educação sexual da juventude, mas o tempo ultrapassou o relógio para que a ideologia moralista fique em segundo (terceiro, quarto ou quinto) plano, abrindo espaço para que os conceitos de saúde, educação e direito possam emergir nessa (e em outras) cenas.
Mas e você, se uma criança/adolescente te pedisse (ou precisasse de) orientação, você saberia o que fazer?
Notas:
[2] Nome fictício, escolhido pela pessoa que autorizou a exposição do seu depoimento neste canal de comunicação. Raabe diz respeito à história de uma prostituta, personagem do Antigo Testamento do livro da Bíblia, que ganhou a salvação de Deus por ter ajudado seu povo, sem precisar deixar de ser prostituta.
IMAGEM: https://pin.it/2ZP4ewh
Esse tema norteia conversas há algum tempo e é incrível como ainda precisa ser debatido...
Excelente texto, parabéns
À medida que o neopentecostalismo fundamentalista avança institucionalmente,essa opção de ensino vai indo pro limbo,vide o aumento do percentual de professores evangélicos que adentrarão o sistema educacional nos próximos anos.