A comemoração continuava animada quando ela resolveu ir ao banheiro, cuja porta dá para um lavabo com espelho e não fica à vista de quem está no salão. Ao sair, deu de cara com ele, que estava à sua espera e tentou agarrá-la. Ela reagiu, bateu com a parte traseira da própria cabeça na parede e pediu que a deixasse passar. Em vão. Com uma das mãos, ele imobilizou os braços da moça. Com a outra, puxou a cabeça dela para forçar um beijo. Assustada, ela cerrou os lábios e virou o pescoço, mas ele conseguiu lamber o rosto dela. Em seguida, tirou o pênis para fora da calça. Enquanto a mulher tentava soltar os braços e escapar da situação, acabou encostando mão e quadris no pênis dele.
Infelizmente leitores este não é o início de um conto ou crônica incômodo. Este é um relato de uma festa que poderia ter acontecido em qualquer lugar. Uma narrativa que choca, mas não algo incomum de ocorrer.
Não fui eu quem escreveu tais linhas, preferiria que assim o fosse, que fosse uma ficção inquietante, repugnante. Na verdade, retirei o trecho de uma reportagem da revista Piauí desta semana e suprimi os nomes dos protagonistas, que no caso, calham de ser a atriz Dani Calabresa e o ator, roteirista e diretor global (ou devo dizer ex-global, até que enfim!) Marcius Melhem.
Depois de uma semana intensa de trabalho, acordei na manhã deste sábado e fui olhar o aplicativo do twitter. De repente, percebi nos tópicos em alta a notícia de um assédio. Assédio esse, cometido pelo humorista contra Calabresa.
Ela seria a ponta do iceberg, outras vítimas apareceriam. Mas até chegar nesse ponto, o que essa mulher passou? Não que agora a situação seja tranquila, ainda mais com toda a exposição sofrida. Um mal necessário.
Dani sofreu violência sexual, moral, psicológica. Não foi apenas - como se já não bastasse – uma agarrada forçada numa festinha de empresa ou piadinhas sexistas pelos corredores da emissora. Ela foi coagida de forma bem sutil em seu ambiente de trabalho, onde seu chefe era ao mesmo tempo seu abusador.
A atriz se sentiu desrespeitada como mulher e profissional - situação que aos poucos foi prejudicando sua saúde mental, de acordo com a reportagem:
“(...) passou a ter ânsia de vômito quando pegava o avião de São Paulo, onde mora, para o Rio de Janeiro, onde gravava. Seu coração disparava quando tomava o táxi no Aeroporto Santos Dumont em direção aos estúdios da Globo. “Ela me disse que sentia suor nas mãos e a boca seca quando cruzava a catraca da empresa”, disse uma atriz a quem Calabresa confidenciou algumas de suas experiências. Ela tinha receio de ser boicotada no trabalho e vivia tensa com a possibilidade de se encontrar com Melhem.”
Sintomas claros de um transtorno de ansiedade, leitores.
O que seria assédio e qual o sofrimento por trás dele?
O conceito de assédio sexual inclui avanços sexuais indesejados, pedidos de favores sexuais e outras condutas verbal, não verbal ou física, de cunho sexual, não consensual, que ocorra no ambiente pessoal ou profissional.
A característica mais comum do assediador é a superioridade de poder e controle.
Dentre efeitos psicológicos sentidos pela vítima, pode-se citar ansiedade, depressão, dores de cabeça, perda ou ganho de peso, náusea, distúrbios do sono, baixa autoestima, estresse, distúrbios psicossomáticos, podendo chegar, nos casos extremos, até a um estresse pós-traumático. Observamos muitos dos sintomas que a atriz apresentou no período, segundo a matéria.
Um assédio é algo que impacta muito profundamente na psique de uma mulher, que acaba se sentindo suja, usada, intimidada, receosa, amedrontada.
E quantas já estiveram nessa situação ou em situações semelhantes? Quantas Marias, Cristinas, Joanas já sentiram ou se sentem essa sensação na pele todos os dias na rua, no trabalho, em casa? Quantas já foram culpabilizadas pelo ocorrido?
Aqui não importa somente o caso de Dani. Ele tomou amplitude por se tratarem de duas pessoas públicas. O que importa é uma mulher sendo mais uma vez objetificada por um homem, colega e chefe onde trabalha.
Uma mulher se sentindo mais uma vez acuada, com receio de ser prejudicada, envergonhada sem querem falar do ocorrido, e principalmente, extremamente ferida internamente.
Aqui o que importa é o exemplo de situação nojenta que perdura até (ainda pasmo) hoje, século 21!
Segundo a reportagem, três dias depois do ocorrido no barzinho (nos idos de 2017), na comemoração de 100 programas do Zorra, a atriz estava no Projac e foi abordada por Mellhem que deu a seguinte explicação para se retratar:
“Para, para, para.” (...) “Eu não tenho culpa do que aconteceu! Quem mandou você estar muito gostosa?”
Um discurso machista que culpa uma vítima, a chama de louca, dramática, e a responsabiliza porque “estava gostosa demais”. Discurso esse que é corriqueiro em rodas de conversa, quando surge alguma discussão sobre o tema, e é proferido não só por homens, infelizmente. O famoso: "Também, quem mandou ela sair com aquele tipo de roupa? Tava pedindo né!". Revoltante.
Aqui o que importa, leitores, é uma mulher ter procurado ajuda e, junto a outras vítimas, ter ido atrás de justiça, não ter se calado.
A maioria das pesquisas sobre a prevalência de assédio sexual é em relação ao que ocorre no ambiente de trabalho, como no caso de Calabresa.
“Somente na Europa, a porcentagem de mulheres que sofreram algum tipo de assédio sexual no local de trabalho varia de 40 a 50%. O assédio sexual verbal é o mais comum (2 em cada 3 mulheres assediadas sofrem), embora o contato físico inadequado também seja bastante comum.”
O fato ainda mais preocupante de tal pesquisa é o percentual de mulheres que denunciam o assédio que sofrem, 29% - das quais apenas 15% acreditavam que sua queixa seria tratada de maneira justa - em comparação àquelas que não apresentaram nenhum tipo de queixa (71%).
Imaginem os dados em casos tupiniquins...
Se Dani Calabresa precisou ser reafirmada por 43 pessoas e ainda assim a Globo não falou sobre o motivo específico do afastamento de Melhem do quadro, imagina um caso privado em alguma empresa pequena por aí.
O caso dos famosos vindo à tona é mais um alerta para o que ocorre há séculos com tantas mulheres e que precisa ser denunciado. A questão é que nem sempre D. Maria está amparada judicialmente e psicologicamente para se ver capaz de falar e de sair de uma situação de assédio. Sua boca se cala, como tantos Melhems querem. E a vida segue (será?).
De acordo com a reportagem, em certa feita, Marcius teria soltado a seguinte indagação, que intitulou a matéria inclusive: “O que mais, filha, que você quer para calar a boca?”
Então eu, como mulher, e em nome dela e de tantas que por isso já passaram ou se solidarizam, venho lhe responder, Sr. Melhem:
Queremos respeito!
Respeito para sair como a roupa que bem entendermos, dançar, agir espontaneamente, utilizar um transporte público, caminhar tranquilamente pelas ruas, trabalhar, enfim, poderia listar infinitamente aqui.
Respeito para fazer tudo isso e mais um pouco, sem escutar cantadas obscenas e ofensivas, sem ser perseguida por um carro, sem receber uma esfregada no ônibus ou metrô.
Respeito para não ser culpabilizada socialmente por uma ação onde o unicamente responsável seria aquele homem que está assediando.
Sim, quando esse respeito finalmente for uma realidade, aí quem sabe a gente cale a boca, ok?
Imagem:
https://st3.depositphotos.com/9880800/17350/i/450/depositphotos_173506260-stock-photo-men-eating-pizza.jpg
Fontes:
https://maestrovirtuale.com/assedio-sexual-tipos-sintomas-e-consequencias/
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