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DESCOBRI QUE SOU PAS, GRAÇAS AO MEU FILHO



Com olhos cansados, eu pego uma faca e corto uma suculenta manga madura. Divido os pedaços. Parte deles será a minha primeira refeição da manhã. Mas, pasmem, eu, pessoa vegetariana há mais de vinte anos, não costumava comer frutas. A não ser que alguém me oferecesse, eu dificilmente separava uma fruta na feira e comia em um horário determinado do dia. Isso mudou depois que meu filho nasceu. Passei a me preocupar em construir o paladar dele com alimentos saudáveis e, entre uma fruta e outra, me vi separando uma parte para mim - e meu corpo sedento de frutas. 


Esse não foi o único feito que a presença do meu filho, e minha dedicação a ele, me deu de presente, como um combo finalmente positivo da vida exaustiva de uma mãe solo. No início do ano, eu entendi que sou uma Pessoa Altamente Sensível, ou PAS, para simplificar. Não se trata de uma doença de caráter diagnóstico ou uma condição psíquica. Pelo o que explicam os especialistas, é uma pessoa que possui um sistema nervoso que opera de forma distinta, com uma capacidade sensorial muito apurada que lhe confere uma enorme sensibilidade aos estímulos, ao mesmo tempo em que se conecta ao outro mais rapidamente, por “absorver” a emoção alheia. Além disso, sua alta capacidade de absorção a torna mais atenta ao todo, conferindo uma habilidade quase sobrenatural de prever movimentos, ideias e consequências. 


É um alívio escrever essas características e saber que não estou sozinha nesse mundo. Mas, por muito tempo, não foi assim. Na verdade, até pouco tempo atrás, conviver com esse potencial sensorial era um grande martírio na minha convivência humana/social. Apesar de ser uma pessoa extrovertida e bem entrosada a qualquer grupo de pessoas, algo sempre parecia fora do lugar. Era bom e era péssimo estar perto delas. Absorvia histórias com encantamento, ao mesmo tempo que me cansava de conversas superficiais ou espaços envoltos de intensa luz e sons, como normalmente são os lugares de socialização. Queria ficar, para saber mais. Queria também correr desesperada porque sentia meu cérebro extremamente cansado e sobrecarregado. 


Foi um bebê e, depois, um menino, tão sensível quanto eu, que me salvou dessa confusão entre amar e odiar minha forma de perceber o mundo. Meu filho, quando nasceu, me obrigou a diminuir o ritmo, como qualquer criança recém nascida demanda. Porém, sempre percebi que ele era mais necessitado de paz do que os outros bebês. Os choros estridentes dele rapidamente me fizeram entender que lugares de intenso estímulo não serviam e passei a prestar mais atenção nisso. Como um só corpo, mamãe-bebê, me reeduquei sobre onde ia, o que fazia, com quem andava. A cada dia, me sentia em paz com as escolhas para ele, que ressoavam em mim. 


Niná-lo ao som do George Harrison era muito satisfatório, mais do que a experiência do amor materno. Mesmo quando ele não estava comigo, queria voltar para o meu ninho de paz e leveza. Ao crescer, meu pequeno passou a socializar, e era tão simpático e entusiasmado como eu nesse quesito. Mas, ele também cansava, pedia profundidade e leveza nas interações com o mundo. Numa conversa sem palavras, eu entendia o que ele queria dizer e fazia todas as mudanças necessárias. Hoje, temos uma rotina que cabe muito bem nós dois. Foi analisando esse ponto que me questionei porque eu não tinha feito aquilo por mim antes dele nascer. 


A resposta para essa pergunta será o cerne deste texto. Eu não o fiz porque aprendi a viver incomodada, agoniada, encurralada, até mesmo perturbada. Meu lugar social como mulher me dizia que não havia espaço para reclamar, me chatear, sem que houvesse os motivos calculados pela convivência social. Infelizmente, o condicionamento feminino nos coloca nesse papel de tolerar pequenas coisas para não perdemos nosso status de graça e plenitude nos espaços sociais. Mulher chora, mas não muito. É sensível, mas não dramática. Conversa, mas não precisa aprofundar tanto.


Minha socialização me impediu de amenizar inúmeros desconfortos e moldar sabiamente minha vida segundo às minhas necessidades. É um total absurdo pensar que aguentei tanto tempo de perguntas sem respostas sobre quem eu era e como me sentia na vida, simplesmente porque não cogitava arrumar meu entorno para o que me cabia ser e, especialmente, sentir. Nesse ponto, podemos entender como a submissão não é apenas um “baixar a cabeça diante de ordens dos que detém o poder”. Eu me submeti mesmo sendo uma mulher aparentemente independente. Eu aceitei porque não tinha qualquer ferramenta de auto-reflexão que me expandisse das expectativas sociais sobre meu comportamento favoravelmente feminino. 


Foi preciso o mergulho da maternidade que (não se engane!) é altamente repressora aos corpos femininos, mas, no meu caso, ao nascer um “clone do sentir”, pude experimentar o mundo que sempre quis construir em minha volta. Mais ainda, foi necessário me separar do pai da criança e morar apenas eu e meu menino. Na nossa parceria, construímos uma casa única, do nosso jeitinho, dando o espaço que eu precisava para viver plenamente como uma Pessoa Altamente Sensível. 


Por longos 40 anos, vivi encaixada para o mundo e desencaixada do meu eu, como se fosse uma estranha de mim mesma. Agora que me vejo nas características de PAS, percebo que ainda há muito trabalho a ser feito. Preciso abrir mão desse castelo bonito e oco que criei. Há inúmeras muralhas a serem derrubadas. Toda vez que me sinto confortável e plena no meu sentir e viver, percebo que não funciono mais como os outros esperam - aí acontecem os distanciamentos e as solidões… Não é fácil, mas estou finalmente inteira na minha pele. Não troco isso por nada. Nem por ninguém.


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