Antes de mais nada, o texto de hoje é uma possível leitura sobre a realidade.
Do ponto de vista das elites, a democracia, sua extensão (política, civil e social) ou radicalização, é um tiro no pé contra ela própria. O problema não é o sufrágio universal, pois está dentro da democracia formal eleitoral, procedimental, compatível com a saúde do capitalismo. O problema é inclusão social, maior igualdade e atendimento às demandas populares. Para a elite econômica, a ascensão por via eleitoral de Putin, Bolsonaro, Trump, Erdogan, dentre outros, não é um problema grave - a não ser quando o autoritário no poder prejudique as grandes empresas, como parece estar acontecendo na Rússia com o suposto bloqueio do Swift, um pix internacional. Contudo, de maneira geral, a extensão da democracia liberal é uma armadilha para as elites, pois o próprio regime é incompatível com o capitalismo. Incompatível não significa a não existência de ambas, mas tensões constantes e inacabadas, com limites permitidos num grau tolerável e aceitável. Em outros termos, quanto mais a corda é esticada, mais riscos de falência múltipla sofre o sistema democrático.
Com o avanço do capitalismo monopolista ou de oligopólios, há uma tendência, sim, à concentração de renda, e, por conseguinte, a uma maior desigualdade econômica, como explicado por Thomas Piketty, em O Capital do Século XXI. Com aumento da desigualdade, há sempre espaço para as críticas e o descontentamento da população, numa democracia, por uma demanda de mais igualdade, sobretudo material, mas não somente. Nesse espaço, é cada vez mais comum autoritários chegarem ao poder com apoio das massas, prometendo lutar a favor dos interesses nacionais e contra o império do capital internacional e seu livre mercado. Claro que, no fim das contas, esses autoritários têm mais discurso do que prática, afinal não se governa sem as elites econômicas, financeira, industrial ou mercantil.
Rousseau, no Contrato Social, dizia que a democracia só daria certo numa sociedade em que praticamente as condições econômicas e culturais fossem muito semelhantes, e com uma população também em níveis bem menores do que nossas democracias atuais. E com o capitalismo nos moldes que aí está, há uma incompatibilidade crônica com a extensão da democracia.
Atualmente fala-se bastante em defender a democracia impedindo, com fortes mecanismos institucionais, a chegada de autoritários ao poder. Estes, diariamente, tem trabalhado no enfraquecimento dos pesos e contrapesos constitucionais, esgarçando, inclusive, o tecido social, vide Jair Bolsonaro. Os democratas prometem aperfeiçoamento institucional, via partidos políticos, via sistema eleitoral ou mesmo alternativas mais eficazes para conter crimes de responsabilidade pública dos executivos eleitos. Mas, petrgunto-lhes, adianta somente aperfeiçoar os mecanismos institucionais contra os políticos antidemocráticos ou iliberais, se o povo passa fome e anda endividado aos montes?
Isso para falar do mínimo. O povo paga altos tributos, direta ou indiretamente, sofre, diariamente, com a violência e os péssimos serviços públicos. Então, enquanto uns passam as férias em Bahamas, ganham salários absurdos, ou vivem de rendas altíssimas, outros estão nas favelas, nas periferias, nas ruas, passando todo tipo de dificuldade material para sobreviver. Sem dinheiro, segurança e bons serviços de qualidades disponíveis a todos, indiscriminadamente, não há muito o que fazer.
Com tais problemas, como as elites mantem o status quo e acomodam o casamento entre sistema econômico e democracia? Fortalecendo uma certa crença coletiva, de cunho liberal, da meritocracia, para manter o povo no lugar em que está. Como diria Louis Althusser, em “ Aparelhos Ideológicos de Estado”, os aparelhos ideológicos contribuem para normalizar as condições sociais e espelhar, universalmente, uma visão de mundo que acomoda e evita colisões contra as mais diferentes injustiças.
A extensão da democracia é um problema para as elites econômicas, tomando como referência a tese marxiana de que todo Estado é um Estado de classe, com interesses de classes, não de indivíduos com interesses difusos ou um ente superior que exerce uma vontade coletiva – o tal bem comum. Na sociedade moderna, a classe dominante é a burguesia. Por isso que, em alguns momentos, é preferível às elites endinheiradas um governo autoritário ou que condescende contra a ascensão da igualdade, inclusão ou redistribuição; ou seja, quando essas demandas se tornam perigosas demais às suas próprias existências enquanto classe privilegiada. Mesmo os governantes mais solidários aos apelos populares, não podem dispensar governar sem as elites econômicas, não podem ser insensíveis a elas. E por que a democracia estendida atrapalha o capitalismo? Porque é muita concessão que precisa ser feita aos trabalhadores. Quando as concessões ultrapassam o sinal permitido, elas acabam por prejudicar os lucros das elites, pois perdem benefícios, tais como incentivos fiscais, adiamento, redução, facilidade, perdão de pagamento das dívidas. E o próprio estado também é obrigado a pagar suas dívidas públicas, que, em sua maioria, é financiada por bancos e empresas.
Não podemos esquecer que a democracia é o regime das demandas infindáveis, do desejo inacabado por direitos. Diferentemente da república, que é o espírito do dever coletivo, do zelo à coisa pública, a democracia é um tipo de regime que busca mais igualdade, mais inclusão, numa trama infinita. Como isso é contido até um limite aceitável? Com o uso da ideologia liberal e sua sofisticação teórica, impedindo que a corda estique demais. Ela, a ideologia liberal, faz acreditar que, no fundo, tudo é uma questão de esforço individual e sorte. Ela trabalha no nível do consenso, como bem apontou o filósofo italiano Gramsci, a fim de manter sua hegemonia. Os direitos individuais é a base filosófica que a sustenta, com sua visão ética de gestão da vida subjetiva e objetiva.
Com a ascensão dos direitos sociais, no século passado, sobretudo pela pressão das ideias socialistas de apoio às demandas dos trabalhadores por melhores condições, e por causa das graves crises econômicas que rondaram o mundo, foi inevitável que o liberalismo cedesse espaço para acomodar mais direitos, aceitando reformas sociais e fiscais, alargando uma democracia que antes era bem restrita. Mas o risco é que alguns desses direitos, como a educação pública e fortalecimento dos sindicatos, por exemplo, possa levar a uma maior contestação ao próprio sistema, que vive da exploração econômica pelas minorias. E o próprio capitalismo, com o desenvolvimento da tecnologia, a exemplo da internet, pode levar cada vez mais as pessoas a se informar sobre as próprias desigualdades que ele, capitalismo, produz.
É factual que quanto mais uma sociedade é informada e consciente do que seja seus direitos, num regime de estado democrático de direito, mais riscos sofre a democracia, e maior o risco de ela se desnutrir. Nenhum Estado, e muito menos as elites económicas, suportam o excesso de direitos e demandas das outras classes. Por isso a necessidade de manter um certo nível de ignorância e obstaculizar o acesso da população a certos conhecimentos e excessos de vontades. Ela precisa, estrategicamente, ser contida, inclusive, no consumo de certos bens e serviços, mesmo que, paradoxalmente, o capitalismo viva do incentivo à cultura do consumo irrefreável.
Escrevi no meu texto anterior, que o capitalismo convive bem com demandas que não são propriamente materiais, ou da esfera da redistribuição, como é o caso das questões identitárias, que lutam por maior reconhecimento, a exemplo das questões de igualdade de gênero, racial, sexual, religiosa etc. Não há problema de coexistência entre liberalismo, democracia e capitalismo com as demandas que lutam contra injustiças históricas no campo cultural e simbólico. Desde que o inimigo a ser combatido não seja a existência do próprio capitalismo, ele mesmo até absorve as novas demandas aumentando seus lucros. O que são os produtos voltados para valorizar a negritude e estimular o consumo, inclusive usando celebridades negras? Ou mesmo roupas voltadas para atender as pessoas gordas? Ou, ainda, a produção específica para o público LBTQIA+? E, para ficar claro, aqui não há jogo de soma zero. Há ganhos qualitativos e quantitativos em voga.
Apesar da resistência de reacionários, tradicionalistas, conservadores intelectuais ou do cotidiano, e mesmo alguns intelectuais da esquerda mais ortodoxa, regimes liberais toleram demandas identitárias progressistas – isso não está fora dos direitos individuais, numa certa ética liberal -, e isso não perturba a existência do sistema capitalista, e muito menos atrapalha o capital.
Em resumo, é impossível harmonizar, portanto, uma democracia estendida (o que inclui não só a social, mas também formas de participação política além dos limites eleitorais de dois em dois anos) com capitalismo. No fundo, é difícil conciliar o liberalismo, com seu ideal de liberdade, de indivíduo autônomo e autossuficiente, com aumento de inclusão, de igualdade – diga-se material, redistribuição da produção - fruto da democracia.
A melhor estratégia pacífica para as elites, a classe dominante e suas frações, na manutenção de seus privilégios, é o projeto de alienação popular (através dos vários aparelhos ideológicos existentes na sociedade civil) que impede o desejo por direitos e demandas além dos limites dos esforços - méritos individuais -, ou das demandas voltadas para valorização das identidades e práticas culturais. Para isso serve as ideologias liberais e seu projeto de incentivo à gestão individual existencial e material da vida. Então, a saída é sempre desestimular a extensão ou radicalização da democracia, a fim de evitar maiores tensionamentos. Florescer o cidadão médio, medíocre, retirando qualquer estímulo ao engajamento político, apostando no atomismo social; ao mesmo tempo, apoiar as demandas identitárias, pois elas não afetam os interesses econômicos, desde que o capital atenda a tais desejos de reconhecimento e valorização. Por tudo isso, a manutenção dos privilégios é sempre um jogo árduo que envolve conflitos, estratégias, acordos, avanços, assimilações, recuos e limitações, pois as contradições estão aí inerentes.
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Até a próxima!
Link da imagem: https://blogdotarso.com/2014/06/04/decima-carta-as-esquerdas-democracia-ou-capitalismo/
Essa preposição fica polêmica, né, mesmo que não seja uma grande surpresa. Entre os mais radicais, por um lado, diz-se que a democracia não basta para pensar uma sociedade sem opressão e é um instrumento do capitalismo, por outro lado, que a democracia não é igual ao capitalismo, mas ambos os lados parecem dizer que é preciso conviver com a democracia para perceber que ela é insuficiente. É como se a democracia fosse uma ponte, uma experiência necessária para uma outra coisa. Seu texto me lembrou a ideia central do livro “Brasil: Neoliberalismo versus Democracia” de Alfredo Saada Filho e Lecio Morais e também do livro "A Democracia Inacabada" do Pierre Rosanvallon. Gostei muito, e a conclusão, sobre o investimento…
Você falou muita coisa no seu texto,mas o que me chama atenção é que a lógica capitalista permite sim os anseios das minorias,dentro de uma exposição de mercado. Isso é democrático. O problema está na conformação das elites a um sistema mais ou menos democráticos de acordo com contextos políticos,sem se ater a princípios. Em 2018,valia a eleição de um boquirroto medíocre,desde que seu governo detivesse a "onda liberal" que impregnava no horizonte social. Agora,esses mesmos agentes abraçam a "frente democrática" para reverter as convicções a qual se apegaram a poucos anos. Acredito que a democracia é um molde que os mais abastados manejam de acordo com seus interesses e capacidade de articulação com aqueles que podem alcançar o poder,limitando…