Por todos lados, a gente ouve sobre a tal maternidade compulsória, não por ser um impulso, mas por ser impulsionada na vida feminina como algo mandatório sobre sua validade e dignidade humana. Ser mulher é ser mãe. Pode até não ser mãe, mas não faltará esse tema por uma vida inteira até essa mulher parar um pouco e decidir não sê-la (e ser amplamente massacrada por parentes, amigos e desconhecidos). As mulheres entenderam essa imposição e não param de falar disso porque talvez elas queiram dar às pessoas um gostinho do sufoco que é caminhar na vida sem ser deixada de lado do labirinto materno. Depois de tanta falação, inclusive feita por mim diversas vezes, eu vou te dar o gostinho nada familiar do oposto: a paternidade compulsória.
Sim! Existe uma paternidade mandatória acontecendo todos os dias, mas muito pouco comentada no nosso almoço de domingo. Não pense que ela estará no lugar de assumir um filho, já que temos a assombrosa realidade de pais abandonando filhos diariamente (no Brasil, cerca de 172,2 mil crianças não tiveram o pai na certidão de nascimento em 2023) e nada demais acontece a esses homens que, muitas vezes, acabam entrando em outros relacionamentos, fazendo mais filhos e mantendo seu legado invicto de serem apenas genitores. Nem imagine que essa paternidade obrigatória vai acontecer na entrevista de emprego quando o contratante questionar se aquele candidato pretende ter filhos porque, caso os tenha, será necessário que se ausente do escritório para cuidar da prole. Para o homem, só existe uma paternidade compulsória: a do sêmen.
Não há nada que impele mais um homem a bater no peito e se dizer pai do que o trâmite genético dentro de um ser humaninho. Isso ficou claro quando, na mesma semana, assisti na Netflix um documentário e uma novela (contém spoilers). O real e a ficção que traduziram essa mentalidade condizente com a paternidade compulsória. O primeiro é sobre o caso de um homem na Holanda que estaria doando desenfreadamente seu sêmen para casais e em bancos de esperma ao ponto de ter quase 3 mil filhos ao redor do mundo. O segundo é sobre um casal que a mulher passa por um fenômeno de superfecundação ao ficar grávida de gêmeos, sendo que cada criança é de um pai diferente, por ela ter tido relação com dois homens no mesmo dia.
Vamos encarar o exemplo da realidade primeiro. Um jovem e descolado rapaz, Jonathan Jacob Meijer ofereceu seu sêmen para alguns casais, alegando que fazia isso por puro altruísmo. Anos depois, os casais descobrem mais pessoas que foram beneficiadas pelo bom ato dele e, em uma impressionante investigação, chegam a possibilidade do Jonathan ter mais de 3.000 filhos espalhados pelo mundo, burlando regras relevantes dos bancos de esperma sobre o limite de filhos que um doador pode prover. O documentário vai a fundo na história do protagonista e descobre um verdadeiro pacto masculino de fornecimento descontrolado de sêmen em nome de uma disputa de quem é capaz de “povoar” mais nos próximos anos.
O Jonathan não tem ganhos monetários com essa empreitada e o documentário deixa claro que sua única motivação é o prazer inegável de entregar sua semente fértil por todo o mundo, quase como uma franquia de DNA dele vagando pela humanidade. Isso fica claro quando o sujeito é levado ao tribunal pelas mães enganadas e a juíza lhe questiona porque ele não se preocupa com a ideia de tantos meio-irmãos existirem por causa dele. Ele alega que isso não seria um grande problema. Bastava que cada criança nascida com o semên dele apresentasse um brasão em suas redes sociais para que fosse reconhecido como filho de Jonathan e não haveria perigo deles namorarem ou se casarem. Brasão? Sim, esse homem visualiza seu feito como uma grande dinastia ao ponto de, no seu canal de youtube, publicar vídeos sobre seus pensamentos, ideias ou até práticas usuais. Tudo com um tom bem educativo, garantindo que sua prole tenha a oportunidade de ser paternado por ele. Resumindo, o patriarca quer ser ouvido e idolatrado pela sua gênese!
Esse mesmo instinto paterno se mostra presente no personagem Tomás na trama da novela brasileira da Netflix, “Pedaço de mim”. Casado com Liana, ele descobre que sua esposa está grávida de gêmeos, um fecundado por ele e outro fecundado por outro homem, o Oscar, (um fenômeno raro chamado superfecundação) que ela se envolve depois de uma briga do casal após ela descobrir que o marido a traía. A história deixa claro que não houve sexo concessual de Liana com Oscar, pois o rapaz a estuprou enquanto ela estava desacordada. Por conta desse cenário, Liana possui grande dificuldade de aceitar o bebê que não era do seu esposo, cogitando doá-lo após o nascimento. Porém, ela não consegue fazê-lo porque pensa que os irmãos não poderiam viver separados. A personagem ainda sofre com as lembranças da violência que viveu mas, a ideia de criar as crianças juntas a faz superar essa dor. E Tomás?
Para ele, parece impossível aceitar o filho de outro homem sendo cuidado, criado e amado na sua casa junto ao seu filho legítimo. O tempo passa e Tomás não consegue deixar de pensar que ele não é o pai de verdade de um dos meninos, procurando continuamente na criança os traços do Oscar, ao ponto de não demonstrar carinho e apreço por ele. De fato, ele vê apenas o outro homem naquela criança e isso lhe corrói por dentro porque aquele gene intruso está diante dos olhos dele todos os dias. Não é sobre conviver anos com aquela pessoa, vê-la crescer, se desenvolver e, mais ainda, notar o amor que ela demonstra. Nada disso é capaz de tirar da cabeça de Tomás o desprezo pelo não filho porque o mandatório da paternidade é exatamente o que falo neste texto: saber que o filho é seu, do seu sêmen, da sua especial e única semente de vida.
Esses exemplos ilustram bem a paternidade compulsória, aquela que mexe os ânimos de homens que, muitas vezes, não vão se interessar pelo espaço de gerenciamento, organização e aplicação do cuidado da sua prole, mas que serão imensamente afetados pela dúvida do carimbo de seu DNA transcrito nas células de um ser alegado como seu filho/a. Esse transtorno talvez advenha da agonia que lhes toma as ventanas em perceber que não têm controle sobre aquele útero fértil que foi alvo da sua semente germinadora. Quantas outras sementes entraram ali? Pelas contas da gestação, talvez apenas a mulher saiba realmente qual delas é responsável pela formação do feto em seu ventre. Cabe a eles esperarem essa sujeita lhes dar a palavra que o filho é seu ou, exigir a prova segundo o relatório de um laboratório. Não à toa, nos anos 90 e 2000, virou uma febre programas de mau gosto da TV fazerem revelações da paternidade ao vivo, com direito a quebraria e confusão caso a resposta fosse negativa.
Enfim, compulsoriamente, os homens querem ser pais apenas se for para provar seu atestado de semên no feto, para que possam se gabar com o entorno sobre seu poder de deixar descendentes pelo mundo. Todas as outras obrigações equivalentes à parentalidade paterna, eles dispensam precisamente e entregam de mão beijada nas mãos da mãe. De pai, basta ser de DNA!
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