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Foto do escritorCarlos Henrique Cardoso

Conta pra mim: é válido alterar trechos de clássicos infantis?

Em dezembro de 2019, o Ministério da Educação lançou o programa “Conta Pra Mim”, projetado pela Secretaria de Alfabetização. A intenção seria motivar o desenvolvimento intelectual na primeira infância através de técnicas narrativas perpetradas pelos pais, por meio de conhecidas fábulas. Isso estimularia a interpretação verbal, desenvolvimento da oralidade, leitura e escrita. Contava com distribuição de livros para famílias de baixa renda. Na ocasião, não houve críticas ao projeto inicial. No entanto, a conta do “Conta” chegou agora.

Um abaixo-assinado impetrado por 3 mil escritores, educadores e ilustradores solicita a suspenção dos livros utilizados pelo programa, livros esses com versões modificadas de clássicos infantis, como “João e Maria” e “Chapeuzinho Vermelho”. Alegam retrocesso em tal medida e afirmam que histórias tradicionais como essas não podem ser alteradas. Será?

Os contos de fadas eram voltados para adultos, e continham conteúdo que sugeria erotismo e violência. Configurações históricas e construções sociais fizeram com que essas passagens fossem readaptadas e ganhassem outros contornos, como fizeram os Irmãos Grimm. A Disney captou essas trajetórias e imortalizou vários clássicos, tornando-os símbolos do agrado infantil. Atenuando a ação dos personagens, a literatura para os pimpolhos foi se tornando cada vez mais exemplar. Na versão do MEC, o Lobo Mau não é morto pelo caçador, apenas “cai num rio”. João e Maria não tem mais uma madrasta maldosa, e sim uma “mãe protetora”.

Contudo, as ações do atual governo federal devem ser sim observadas. Os autores da petição afirmam desconhecer os especialistas que montaram as adaptações. E não está claro o intuito na descaracterização dos contos. Por que tanta “limpeza” nos enredos? Seria tão maléfico para os pequenos ouvirem que o som produzido pelo Flautista de Hamelin levou 130 crianças para serem aprisionados numa caverna?

Diversos psiquiatras já analisaram que esses contos contribuem para crianças lidarem com conflitos internos em seu processo de aprendizagem e vivência social. Todos aprendemos a enfrentar nossos medos, anseios, e dramas desde novos, e a literatura é um desses modelos. Os contos mostram nada mais, nada menos que condições humanas, ocorridas na mais tenra idade, observadas, digeridas, suportadas e superadas pelos jovens.

A antropóloga Clarice Cohn pontua que a infância é um modo particular de pensar a criança, e não é universal. É uma construção ocidental, com múltiplas formulações e entendimentos nos mais recônditos cantos do mundo. Segue noções de maternidade, criação familiar, sistema educacional e demais variantes que perfazem construtos ligados a fatores sociais, ambientais, culturais e filosóficos que ampliam os marcos de formação do caráter e conduta. Por essas linhas, as adaptações propostas são ineficientes. Os ideais de alteração podem seguir traçados históricos, mas não adormecem as angústias infantis, visto que para entender os significados das versões originais é preciso conhecê-los.

FONTE:

COHN, Clarisse. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2005, 37 pag.

IMAGEM: Revista Superinteressante.

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