Hoje irei falar sobre alguns conceitos de Antonio Gramsci, o pai do marxismo cultural, aproveitando uma aula que dei recentemente numa disciplina de política contemporânea.
A sociedade civil, na visão clássica de Marx , Engels e Lênin, é o reino das relações produtivas, do embate das classes antagônicas, e o Estado é fruto deste conflito irreconciliável, mas que age para assegurar a dominação dos donos dos meios de produção, a chamada classe dominante. O Estado é subordinado pela própria sociedade civil, dominada no capitalismo pela burguesia. Logo, nessa visão clássica, o Estado está no campo da superestrutura e a sociedade civil na base, na infraestrutura.
Mas para Gramsci, a sociedade civil não está na estrutura, mas na superestrutura.
Superestrutura é a sociedade civil (organismos privados e suas concepções) mais a sociedade política ou Estado (reino da força).
A sociedade civil não se reduz às relações de produção, pois deve-se também considerar as relações culturais, o campo das ideias.
A Hegemonia é o predomínio ideológico (concepção de mundo) das classes dominantes sobre as classes dominadas/subalternas na sociedade civil. O que sustenta a sociedade burguesa, primariamente, não é a força militar e muito menos o monopólio das forças produtivas; mas o consenso, o construto ideológico (intelectual) da classe dominante.
A hegemonia gramsciana, diferente de Lênin, é a primazia da sociedade civil (reino dos valores e da cultura) sobre a sociedade política (reino da dominação político-militar).
Contudo, Gramsci não nega a condição fundamental da sociedade burguesa, que é a atividade econômica, mas que não é condição suficiente para manter sua hegemonia.
A aceitação da dominação, o consentimento por parte da classe subalterna, ocorre, centralmente, no nível da cultura, ideias, valores. Há disputas políticas hegemônicas no seio da classe dirigente e contra as outras classes. A luta pela hegemonia se dá também nos vários aparelhos institucionais, escola, museus, clubes, cinema, jornais, sindicatos, Igreja etc. Manter a hegemonia é lutar, é disputar o controle das consciências para universalizar uma visão de mundo, qualquer que seja.
Assim, a hegemonia da classe dominante é o monopólio do Estado - como aparelho de força militar e jurídico/político para manter os interesses econômicos – mais o nível da cultura, das ideias, que inclui o próprio Estado e outros aparelhos ideológicos da sociedade civil (fora do âmbito diretamente estatal). É esse nível da cultura o polo mais importante para Gramsci.
O Papel do Estado. O Estado é um ator relevante, e não secundário, na compreensão da sociedade capitalista. O Estado não é neutro e deve ser compreendo de forma mais ampliada.
O Estado é um aparelho coercitivo do poder econômico burguês (uso da força militar e dos três poderes) e, ao mesmo tempo, parte da sociedade civil (reino do consenso, das ideias/ideologias).
A falta de consciência de classe por parte dos oprimidos é produto das estratégias da hegemonia, principalmente, no campo das ideias. O Estado é um ator fundamental para reprodução das ideias dominantes, portanto.
O Estado pode mudar incorporando demandas da classe trabalhadora – alguns direitos civis, políticos ou sociais - , mas mantendo a hegemonia da classe dominante, impedindo a luta e a consciência de classe, ou a revolução ativa. Mudar conservando – reformismo - eis o que Gramsci considera a revolução passiva. Esta nada mais é do que uma maquiagem que não chega no nível nevrálgico da exploração econômica.
Crises de hegemonia. São crises que ocorrem quando a classe subalterna não reconhece a legitimidade do bloco dominante, seja por medidas impopulares (muitas vezes decorrentes de crises econômicas) ou por crescente consciência política das massas.
Crises de autoridade ou crise geral do Estado. Acontece quando a classe domina (exercendo somente a força coercitiva), mas perde a direção (consenso). Só o controle do Estado não garante que o poder passe de uma classe para outra. É preciso, mesmo antes da tomada de poder, refundar uma nova sociedade, conquistar os espíritos, dominar as consciências.
Guerra de posição. Tem por objetivo sitiar o aparelho do Estado com uma contra hegemonia. Rússia, por exemplo, quase pré-capitalista, foi para o confronto direto na Revolução de 1917. Mas esta estratégia não pode ser replicada automaticamente em todos os lugares. Gramsci não é um pensador mecanicista. A guerra de posição substitui a tática de frente única, pois o sucesso de uma revolução proletária tem outras frentes, além do núcleo duro do Estado, da política.
Numa sociedade capitalista complexa, bem aburguesada, com uma sociedade civil bem desenvolvida, a estratégia de tomar o poder pela força é bastante frágil. A melhor tática para tomada de poder é antes a conquista no campo ideológico (preponderância moral e cultural). Nessa sociedade, só faz sentido assumir, de forma estável, o poder estatal para mudá-lo, conquistando previamente o monopólio ideológico das consciências nos espaços da sociedade civil. Aí está a estratégia contra o bloco hegemônico dominante. Só a coerção, o conflito direto, não dá conta: é preciso conquistar o apoio da grande maioria da população.
O Partido e os intelectuais. O partido é a elevação de consciência e educação da classe. Sim, mas o partido trabalhador, de cunho realmente revolucionário e transformador, só será eficaz para a mudança de uma nova sociedade, a socialista, si, e somente si, criar uma base ideológica em seu seio, incorporando as massas, num processo coeso, inclusivo, amplo.
Intelectuais orgânicos. Todos aqueles que agem, com expertise, em favor de sua classe, para além de sua profissão, dirigindo as ideias e aspirações –visões de mundo - , é um intelectual orgânico. Este intelectual tem o papel de homogeneizar a classe que ele representa – ou para manter a hegemonia ou para estruturar uma contra hegemonia. Há também intelectuais vindos de uma classe para a outra, e tornam-se orgânicos, a exemplo do próprio Engels.
Todos têm potencial para ser um intelectual orgânico: do pobre ao rico, do menos escolarizado ao mais escolarizado. O papel do partido proletário, que defende a classe trabalhadora, é trazer essas pessoas do seio das massas. Gramsci acreditava na qualidade intelectual das massas e na capacidade delas de criar a hegemonia de uma classe – com táticas e teorias revolucionárias. Eis o Partido de Massa, e não de vanguarda, dos intelectuais missionários de Lênin.
É importante dizer que Gramsci mostrou as ferramentas tanto para manter-se no poder, como para enfrentar quem está no poder. Por isso ele pode ser utilizada pelos diferentes espectros ideológicos sempre em disputa, inclusive pela extrema direita.
Não se pode perder de vista também que, como qualquer autor marxista, ele aceita que só há sociedade burguesa porque, em última instância, há expropriação dos meios de produção por esta classe.
Nesta última parte quero trazer uma questão atual, a luta pelo reconhecimento, no campo da nova esquerda. Gramsci certamente apontaria para a necessidade de não perder de vista que a verdadeira opressão não é de identidade, mas de classe, de expressão universal. A sua estratégia de hegemonia cultural, diria o filósofo italiano, é de politizar a sociedade civil, nos diferentes espaços de disputa, contra a desigualdade econômica, que é a raiz dos maiores problemas do mundo atual.
A inserção dos excluídos historicamente, no campo dos valores raciais, étnicos, sexuais, gênero, com a ampliação dos direitos civis, seria um reformismo orquestrado pela ideologia liberal, que deixaria intocada a questão da produção econômica, e rebaixa o universalismo da luta popular contra a exploração do trabalho. Em suma, dificulta a organização e a atuação em conjunto.
Não há incompatibilidade entre acumulação do capital - expropriação da força de trabalho com a mais-valia - e a aceitação das demandas de grupos identitários, particulares. Inclusive o próprio capitalismo incorpora tais demandas vendendo novos produtos para os trabalhadores, com uma marca identitária, um novo mercado bastante rentável. A questão que fica é: quem ganha com isso? Ambos ganham? O que é mais importante: redistribuição econômica e/ou reconhecimento? O que é mais injusto? Deixo com vocês!
Referência. CARNOY, Martin. Estado e Teoria Política. Campinas: Papirus, 1986.
Nossa, gostei muito. Parabéns pela síntese. Eu particularmente me sinto bastante leigo nesse assunto, vejo muitos debates interessantes acontecendo de todos os lados, na esquerda intelectual. Por isso, às vezes, acho difícil entrar nesse campo, porque exige uma imersão muito grande, mas textos como esse nos ajudam muito. Eu até sugiro uma série sua sobre esses pensadores/militantes/intelectuais de esquerda mais influentes até hoje.