O grande desafio do nosso século cheio de individualismos, cancelamentos, brigas, discórdias, é o saber viver junto.
Em verdade, desde que o mundo é mundo e desde que o ser humano tem ego, ou seja, desde sempre viver junto nunca foi o forte da nossa espécie. Ainda assim, talvez, em algum lugar, é possível encontrar possibilidades para desfrutar do viver junto.
Penso nas experiências não ocidentais e aqui não estou me referindo a divisão geográfica oriente e ocidente, mas no que se consolidou como ocidental, ou seja, a cultura europeia que colonizou o resto do mundo.
Poderia evocar aqui teóricos como Stuart Hall, , Walter Mignolo, Gayatri Spivak, Ailton Krenak, Chatherine Walsh, Edward Said e outros que pensam em um mundo de uma maneira não ocidentalizada, buscam em outros tipos de comunidades, uma maneira menos predatória para viver junto.
Uso predatória aqui tanto no sentido de Hobbes “O lobo é o lobo do homem”, quanto pelo código de Hammurabi: “Olho por olho, dente por dente” e, mais contemporaneamente uso o termo predatória para pensar o Antropoceno, ou seja, o ser humano no centro do mundo, destruindo a natureza e sua casa, devastando o planeta Terra até não restar condições para a existência da vida humana.
Muitas comunidades não ocidentalizadas, leia-se aqui, povos aldeados (indígenas nas), quilombolas ou comunidades que vivem de subsistência da própria terra, dividindo tarefas e trocando materiais e saberes, são exemplos do que pode vir a ser uma construção da vida em comunidade, mas como trazer isso para a urbis?
Apenas para constar quando faço esse questionamento não estou dizendo que os povos citados são atrasados, muito pelo contrário, hoje em dia quase não se existe mais comunidades isoladas e toda aquela ideia do índio nu caminhando pela floresta não passa de um romance indigenista do século XIX.
Hoje os povos não urbanos tem celular e usam tênis de marca, porém não perderam o contato com a terra, ainda que muitos saiam de seus locais de origem para explorar o mundo, alguns voltam, outros não. Aos que voltam há uma agregação do saber urbano na cultura local, aos que se mantém fora há um espraiamento de sua origem. Mas gostaria de ressaltar que isso não é a regra, não há pretensão de generalização aqui, ainda mais quando escrevo a partir de um lugar urbano, de uma das maiores capitais do país.
Quando penso no viver junto na urbis, nesse contexto caótico de cidade em que as pessoas passam em média 8 horas por dia trabalhando e depois disso só querem ver ñ novela, série, filme e depois descansar, olhar para o outro se torna quase uma caridade ou um sacrifício. Não há tempo para a empatia, para saber do outro, afinal cuidar de si já não é tarefa fácil no contexto estressante e inquietante em que vivemos. Porém, existem saídas e elas estão logo ali.
Olhe pela sua janela e veja as estrelas, pense que você é uma delas, respire fundo e repare, tire um tempo para observar. O começo da mudança para viver melhor em comunidade é a observação dos detalhes, sair do automático.
Não é tarefa fácil quando estamos todos cansados, bitolados, pilhados, estressados, mas ainda há tempo, afinal nos reconhecemos no outro e vivemos dores coletivas parecidas: a percepção da desigualdade social, o estresse, a melancolia, a indignação com a violência, a indignação com a corrupção, o cansaço e outras problemáticas comuns.
Claro que há nuances e divergencias de opiniões nesses tópicos citados e haverá em outros também. Cada ser tem sua forma de pensar e de existir, mas como iniciar uma mudança social se nem dermos um bom dia no elevador ou agradecimento para a caixa do supermercado? Ninguém é obrigado a ter atitudes educadas com o outro, mas isso já muda o dia de alguém, porque a partir da interação de um, o outro se ver percebido. Isso já é um começo para a modificação social.
A partir do início do diálogo é possível conversar com respeito e essa última parte nem sempre ocorre, simplesmente porque ninguém quer ter seu ego ferido, tanto o individual quanto o do seu grupo pertencente. Por que algumas pessoas não podem simplesmente discutir opiniões sem precisar levar isso para o pessoal e o por que só a narrativa delas importa?
Essas são questões cotidianas e complexas. Muitas pessoas só querem estarem certas e ganhar na guerra das ideias. Quando não escutam o outro ou não aceitam uma opinião alheia partem para agressões que vão desde a indiferença, passando pela ofensa verbal, podendo chegar a prática de crimes hediondos. O exercício da escuta é extremamente difícil, mas essencial para os construção da mudança individual e, sobretudo, coletiva.
O princípio do viver junto é alargar os limites do si, ou seja, ter mais atenção ao outro. Isso não quer dizer ser necessário abrir mão do que é essencial para o viver individual, mas quer dizer que é possível dividir o espaço com outras pessoas e reparar nelas e, quem sabe, traçar um diálogo, mas antes é preciso vencer o cansaço, a indiferença e a arrogância. Como diz a música do Criolo: “As pessoas não são más, elas estão perdidas”, acrescento: e precisando de afeto.
Imagem de capa: Visões Simultâneas, 1912 - Umberto Boccioni <https://www.wikiart.org/pt/artists-by-art-movement/futurismo#!#resultType:masonry>
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