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CINEASTAS DA DEGENERAÇÃO:SEXUALIDADE E PSIQUE EM BERGMAN, EGGERS, E SALLES




Recentemente, revisitei uma das obras que considero mais perturbadoras do diretor Ingmar Bergman, “A Hora do Lobo” de 1968. Além de me lançar em uma instabilidade emocional que já estava vivendo — o que foi bom, pois me fez refletir sobre meu momento atual em vários aspectos da minha vida —, o filme também me fez lembrar de duas obras: “O Farol” (2020), de Robert Eggers, e “Nome Próprio” (2007), do brasileiro Murilo Salles. Pois cada uma, a seu tempo, é repleta de elementos simbólicos que representam o desmoronamento psicológico dos personagens e as fragilidades da mente humana através da sexualidade, e de como isso é potencializado pelo isolamento. 


O simbolismo nessas três obras já começa pelo título. A "hora do lobo" é um conceito que aparece em várias culturas e é amplamente conhecido por sua associação com momentos de inquietação e vulnerabilidade durante a noite, mais especificamente das 3 horas da madrugada ao surgimento da aurora, às 5 horas da manhã. Nessa obra sueca, da qual Bergman assina o roteiro e a direção, ele coloca o personagem para descrever “A Hora do Lobo” como o momento em que a maioria das pessoas morre, as crianças nascem e os pesadelos são mais intensos. Curiosamente, eu nasci às 3:30 da madrugada, mas isso não vem ao caso. Sobre “O Farol”, título da obra de Eggers, o próprio nome e a ideia do local onde se desenrola a trama já nos remetem a inúmeros significados, entre eles o da luz que revela os segredos sombrios. Já “Nome Próprio” nos remete à busca por identidade e autodescoberta, drama central vivido pela personagem, que tenta produzir uma obra genuína e, ao mesmo tempo, entender e aceitar suas próprias imperfeições.


Tanto em “A Hora do Lobo” quanto em “O Farol”, o principal elemento catalisador da crise existencial, bem como das tensões sexuais, é representado pelo local ficcional onde as obras se passam: uma ilha. Em “Nome Próprio”, esse isolamento é representado pelas mudanças constantes de apartamento e pelo vazio dos cômodos percorridos pela personagem. Bergman se serve da fotografia em preto e branco, do surrealismo e da narração fragmentada para nos levar para dentro da mente do pintor Johan Borg (Max Von Sydow), que está em processo de adoecimento psicológico. Após 52 anos, podemos ver alguns desses mesmos elementos de construção de narrativa fílmica, serem utilizados para nos conduzir ao processo de degeneração psíquica de Ephraim (Robert Pattinson) em sua descida à loucura em “O Farol”.


Na década de seu lançamento, “A Hora do Lobo” não recebeu o prestígio que hoje ostenta. Dividiu a opinião da crítica e foi considerado um filme demasiadamente denso e difícil de ser compreendido pelo público. O fato é que questões como a sexualidade na década de 60 e a própria loucura constituíam assuntos tabus, difíceis de serem abordados. Bergman foi um dos pioneiros em tratar dessas questões da forma como o fez, colocando as tensões sexuais e questões não resolvidas relacionadas a elas como ponto de fragilidade que conduz à insanidade. Conflitos de diversas naturezas, para além da predisposição genética, podem levar a crises, como problemas financeiros, amorosos, etc. Mas Bergman trouxe, ainda que de forma velada, questões psicológicas engatilhadas pela não aceitação da própria homoafetividade de seu personagem para serem projetadas em dimensões gigantes nas salas de cinema mundo afora.


Embora a crise sexual esteja presente nessa obra de forma não explícita na imensa maioria do tempo, e seja “distraída” pela obsessão que o pintor tem por Veronica Vogler (Ingrid Thulin), assim como já alertei, “O Farol” e “A Hora do Lobo”, assim como “Nome Próprio”, são obras repletas de simbolismo. Minha dica é: pesquisem o significado do nome Veronica. Essa questão da homoafetividade pode ser vista de forma não tão velada por alguns momentos, por olhos e sentidos atentos, mais precisamente no momento em que Johan descreve para Alma (Liv Ullmann) a luta que teve com um garoto, a quem ele afoga nas águas do mar. A água, nas artes e em diversas culturas, além da psicanálise de Freud, tem conotação sexual. A mise-en-scène construída nessa cena é propositalmente perturbadora, de modo que elementos são inseridos para que tenhamos percepções altamente eróticas, e que pode ser interpretada como uma espécie de encontro de Johan com ele mesmo — o Johan pré-adolescente e suas questões com a sexualidade.


A obra, ao nos encaminhar para a reta final em que Johan fragmenta sua psique e sucumbe à loucura, nos concede o espelho, ao qual o próprio personagem se refere na fala como “despedaçado”, e a maquiagem em seu rosto que é borrada por Veronica, como metáforas que nos indicam a total perda de personalidade e o momento em que ocorre a destruição do “eu”. Já em “O Farol”, visões surrealistas de uma mítica sereia constituem uma alegoria para as tensões sexuais subjacentes, que também nunca são explicitadas, mas que permeiam as interações de Ephraim (Robert Pattinson) e Thomas (Willem Dafoe). Em “Nome Próprio”, a personagem Camila (Leandra Leal) enfrenta a constante tensão entre a necessidade de liberdade para viver uma vida boêmia e o desejo de estabilidade.


Ambos os filmes nos desafiam a pensar a respeito da nossa dualidade, a dualidade humana, e a refletir sobre nossas fragilidades, lucidez e saúde psíquica. Cabe ressaltar que essas obras vão muito além da temática sexual aqui explorada; esse foi apenas um dentre os inúmeros aspectos e facetas que essas obras apresentam e que eu escolhi escrever a respeito. Dito isso, gostaria ainda de chamar a atenção para o impacto que essas obras são capazes de causar. Afinal, “a hora do lobo”, que é descrita também como momento de introspecção e crise existencial, chega para todo mundo em algum momento da vida.


E que bom que temos filmes como os de Murilo Salles, Bergman e Robert Eggers para que esse momento não seja mais solitário e sombrio do que já é. E que essas obras existam para que sirvam como ponto de partida e referência de discussão, para que possamos falar de coisas tão complexas, delicadas e profundas. A arte sendo arte, dando conta daquilo que nem mesmo as palavras e o pensamento racional e lógico conseguem, que é tratar das nossas fragilidades psíquicas mais ocultas.


IMAGEM: Fotografia do filme " A Hora do Lobo" 1968.


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Que massa, fiquei com vontade de assistir os 3. Amo Bergmann, mas não vi ainda A Hora do Lobo

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"O Farol" é um filme bem difícil de assistir,é um longa com muita coisa a ser abstraida pelo espectador.

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Obtuvo 5 de 5 estrellas.

Ótima análise, um dos melhores filmes psicológicos, sem dúvida, uma obra-prima.

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Muito bom. Boas reflexões. Ingmar e outros citados são muito bons. De fato, a" hora do lobo" é para todos.

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