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Foto do escritorJacqueline Gama

Censura ontem e hoje: Por que Marighella é tão atual?



Marighella é uma produção atemporal. O filme não só relata um momento crucial da ditadura militar, ressonando como a representação de um testemunho bioficcional, como também traduz, de forma simbólica, quem seriam os subversivos contemporâneos.


O protagonista do filme é um negro retinto, o ator e cantor Seu Jorge, a licença cinematografia aparece de forma oportuna, já que o verdadeiro Marighella não se pareceu fisicamente com o ator que o retrata. Vi algumas pessoas criticando a escolha do ator em relação ao verdadeiro Marighella, por isso faço esse adentro aqui. A escolha de Seu Jorge foi mais do que adequada, porque parece mais preocupada com a re-leitura da figura política, transformando o filme em uma obra de teor reflexivo, do que de fato se preocupado apenas com estética de aproximação entre um e outro.


Nos dias atuais, os mais perseguidos pela polícia é o povo preto, em especial, o homem negro. Seu Jorge, na pele de Marighella, acaba por aludir o espectador para esse fato contemporâneo. Marighella luta pelo fim da ditadura militar, ele que foi torturado e perseguida por uma polícia corrupta até seu último instante de vida. Esse fato da história de Marighella, me lembra, ainda que sutilmente o caso de Mariele Franco, assim como a última cena do filme. Qualquer semelhança não é mera coincidência, já que muitos políticos e milicianos são crias da ditadura, ao menos em sua ideologia.


Naquele momento histórico ele foi colocado em uma posição de terrorista, privado de ver seu filho e sua família, apontado como subversivo, de esquerda, tendo suas ideias mais valorizadas no exterior do que aqui no Brasil. Se pensarmos em um âmbito global, em comparação com a esfera nacional, sabemos que o ex-presidente Lula foi julgado culpado em um processo improbo pelo ex-juíz Sérgio Moro e agora político (talvez futuro candidato a presidência, mas isso só a história dirá). Lula ficou preso por mais de um ano e, nesse meio tempo, a oposição se elegeu tomando conta do país.


Nessa semana, entre o dia 13 de novembro de 2021 e 21 de novembro de 2021, parece que tudo se uniu: a censura, o Marighella, o Lula, o atual presidente, afinal, Luís Inácio foi aplaudido na Europa, enquanto o governo Bolsonaro estava sendo acusado de censurar a prova do ENEM, e o atual presidente aparece isolado da comunidade internacional.


Assisti Marighella no dia 13 de novembro de 2021, em um cinema patrocinado pela prevent sênior, uma das empresas que pediu para médicos alterarem o CID da covid de alguns pacientes ao mesmo tempo em que deixou pessoas morrerem asfixiadas, por diminuir oxigênio do leito delas ao mesmo tempo em que orientava que “óbito também era alta”, já que mais leitos ficariam vagos e eles iriam lucrar com a morte de milhares de cidadãos.


Ironicamente, após aquela propaganda, lá estava Marighella, no meio da tela grande, um homem negro escrevendo manifestos reconhecidos internacionalmente e roubando um sinal de rádio parar pregar suas ideias consideradas subversivas, ideias consideradas de esquerda e pró direitos humanos, embora, pegasse em armas na tentativa de luta-armada contra os milicos, tentando derrubar a ditadura militar, que tirou a vida de milhares de pessoas e a liberdade de expressão delas. A ideia de luta armada é controversa e polêmica, mas aparece justificada no filme e era justificável para alguns militantes que não apoiavam a vigência dos militares no poder.


A ditadura torturou, estuprou e enterrou corpos em covas rasas e/ou os escondeu, ali estavam homenss, pais de famílias, mães, filhas, gravidas, gente sendo metralhada do lado de cá e de lá, assim como fazem as chacinas nas favelas, ali estava um tempo outro que também é o nosso tempo. Ali estava a prevent sênior, mas ao final, um grande e sonoro “FORA BOLSONARO”, aplausos e choros.


Marighella é uma experiência. Uma experiência do viver junto em coletividade, uma experiência do grito travado na garganta, uma experiência do real, isso depois de nós brasileiros passarmos quase dois anos em isolamento ou ao menos em distanciamento, em um momento que muita gente morreu ou foi rebaixada para uma situação de fome e miséria. O filme, de fato marcou a volta dos brasileiros ao cinema com um grande simbolismo: um filme nacional lotando salas, não qualquer filme, uma produção reflexiva, denunciativa e documental, é muito difícil que produções desse tipo ganhe a visibilidade que Marighella está tendo, ainda mais em um contexto de desvalorização das nossas produções, não atoa, ainda esse ano, parte de arquivos da cinemateca se perderam em meio a fogo, a ANCINE foi praticamente desmontada, servindo aos interesses governamentais.


Marighella estava previsto para estrear no início de 2020, mas teve uma censura implícita, a ANCINE utilizando a burocracia como uma justificativa disse que a produção do filme não tinha entregado uma papelada a tempo, o que não é verdade, já que a própria produtora havia solicitado um pedido de excepcionalidade para a estreia, o qual foi negado. Enquanto isso, depois várias ameaças de boicote pelas esferas reacionárias e depois de mais de um ano de pandemia, oficialmente Marighella corre pelas telonas do país em um momento crucial da história brasileira.


Nessa mesma semana, após assistir ao filme, ocorreu o caso da censura no ENEM, vários funcionários do INEP denunciaram o governo e afirmaram que houve um controle por parte de agentes federais no que poderia ou não ser colocado na prova, o próprio Bolsonaro afirmou que a prova estava com a cara do governo. Até que ponto, de fato, um vestibular nacional está sendo democrático ao barrar questões sobre gênero, raça, religião, sexualidade, estimulando debates importantes sobre essas questões para que o nosso país seja menos desigual e para que a formação dos jovens seja em prol dos direitos humanos de maneira holística? Até que ponto, de fato, está ocorrendo o exercício de cidadania, de livre expressão, quando um vestibular é controlado por censores, há quem, de fato, esse vestibular irá servir ou alcançar?


Também, na mesma semana, ocorreu em Salvador, terra de Marighella, o caso de uma professora de filosofia de uma escola pública que foi intimada, através da acusação de uma aluna, a depor após dar uma aula sobre o iluminismo. Segundo a estudante a professora estava sendo esquerdista e feminista, ideias que os conservadores (ou retrógrados) apontam como mimimi e que os ditadores acusavam de subversão, ideias de humanidade!


Nessa mesma semana ocorreu também um caso de censura em uma escola particular, na mesma cidade, após a professora de literatura trabalhar Olhos d’água, livro de contos de Conceição Evaristo, que denuncia a realidade urbana da violência contra o povo negro em suas diversas vertentes físicas e psicológicas, mas que também expõe diversos afetos, inclusive mulheres pretas amando outras mulheres e isso incomoda o poder vigente.


Também, dias atrás ocorreu crime racismo em grupos de Whatsapp, dos quais participavam grupos de alunos de escolas particulares , intuito o silenciamento de corpos dissidentes e mostrando que apesar de várias discussões no âmbito da diversidade algumas pautas ainda são vistas como menores e piores, revelando a fruta podre que o colonizador nos deixou e que as re-colonizações fazem questão de reinventar com o intuito de se manter no poder.


E para fechar os atos antidemocráticos, uma outra escola particular obrigou professores a assinar um termo para que eles não opinassem em sala sobre questões políticas, religiosas, raciais, de gênero, ou aquilo que os censores do INEP colocam como questões polêmicas, simplesmente, o escancaro da escola sem partido e da canalização da visão dos jovens para determinadas ideologias, afinal, o próprio silencio fala, enquanto decide quem quer calar. Marighella mais do que nunca é um ato de resistência nesse momento em que a palavra e a ideia sobrevivem em um rio de ameaças.



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