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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

Bendito seja Camus!




Costumo dizer que a leitura de uma obra pode transformar algo dentro da gente, sacudir nossas vidas, a ponto de marcar a existência como uma tatuagem impressa em nos sentimentos mais profundos. Talvez essa seja a função primordial da arte literária. Canalizar essa expressão forjada no universo literário é traduzir a descoberta de um novo mundo que se descortina sobre nossos olhos. O ápice do aprendizado é quando conseguimos extrair da literatura toda a potência necessária que muda a percepção e prática sobre o cotidiano. Um autor (a) que coloca paixão e verdade na escrita, atinge o leitor(a) de uma forma especial, por esse motivo, alguns leitores(as) não se sentem sozinhos quando estão com o livro em mãos. Rodeada pelos livros de Camus sinto-me generosamente acompanhada e acolhida.


O escritor franco argelino Albert Camus é um mago que dialoga com o meu mundo interior, ao ler seus livros consigo resgatar minhas memórias afetivas da infância e adolescência. Como leitora, identifico algumas passagens de sua biografia que se assemelham à minha trajetória, lógico, resguardando as devidas diferenças. A infância e adolescência humilde do autor é algo semelhante ao que vivi como alguém que morou no interior. Era uma criança que brincava na rua, subia nas árvores, adorava bicicleta, uma adolescente que tinha um amor genuíno pelos vinis de meu pai, uma menina que colocava os pés no mangue. Rio e mar eram paisagens presentes em minha vida e mesmo com poucos recursos usava a imaginação fértil, gozava dessa simplicidade cotidiana. Essa formação de vida traduz uma visão de mundo fundamentada no valor enriquecedor da simplicidade.


Tive oportunidade de ler algumas obras de Camus, dentre as mais conhecidas, O Estrangeiro e A Peste. Este último colocado na posição de um dos livros mais vendidos durante esse período da pandemia. No presente texto irei abordar duas obras que na minha acepção resumem brilhantemente a potência da escrita de Camus: O Avesso e o Direito e O Primeiro Homem.


O primeiro livro foi publicado por Camus em 1937 escrito com apenas 22 anos de idade. São cinco ensaios literários que abordam os temas centrais da obra do autor: a transitoriedade da vida, a condição do absurdo relacionada à dimensão finita da vida humana, o amor ao seu local de origem Argélia, a solidão humana, formação da consciência social do autor, a paixão pelas paisagens mediterrâneas. Esse vasto universo transitava em seus pensamentos e emoções.

Um dos Ensaios do livro O Avesso e o Direito intitulado, A Ironia é composto por três histórias. A primeira é permeada pela solidão da velhice e finitude da vida. Uma senhora encontra um jovem que a escuta, um alento diante da solidão. Insiste em dialogar com Deus diante da dolorosa constatação de que a maioria das pessoas rejeitam a companhia de uma velha. A saída que encontra para suportar o vazio existencial e a angústia é estabelecer uma conexão com o divino, ao menos Deus não reclama de ouvi-la.


Em outra história, revela mais uma vez a experiência solitária de um senhor que sente o peso do mundo nas costas e deseja passar o tempo contando anedotas, aventuras e desventuras de um passado muito presente. Ele consegue extrair disso uma força para continuar vivendo. Por último, um caso que remete a visão de um neto sobre sua avó. Uma senhora que mantinha valores rígidos, considerada o baluarte da família e que mesmo diante da pobreza conservava seu orgulho e dignidade. Diante da morte, ela traduz o desfecho trágico da própria doença com “humor”. Os ensaios possuem traços autobiográficos. Esta senhora, por exemplo, tem relação direta com a presença firme da avó de Camus na própria família e a influência dessa matriarca nas decisões desse “clã’. Os três destinos se entrelaçam através da morte. A finitude da vida é um traço marcante na obra do autor porque traduz o absurdo.


Já o ensaio Entre O Sim e o Não retrata as reminiscências da infância do autor, onde a vida simples e pobre de sua família ensinou o menino Camus a não invejar nada de ninguém, ele diria que “há uma solidão na pobreza, mas uma solidão que dá o devido valor a cada coisa”. Importante ressaltar que o autor jamais faria apologia à miséria, ele compreendia a dureza da vida nos subúrbios de Argel, e esse fato sem dúvida marcou sua vida. O autor exalta e resgata o valor das coisas simples, como por exemplo, os banhos de mar, os dias de Sol, quando podia raramente comprar um doce, os passeios com o tio e as aventuras com os amigos. Um dos fatos mais dolorosos de sua vida remete ao estupro que sua mãe sofreu. Nesse ensaio o autor expõe essa “ferida”. Como menino sentiu-se impotente e padeceu calado. Sua mãe era uma mulher simples que não sabia ler e escrever, a comunicação com o filho surgia através dos gestos e silêncios. Quase tudo era “dissolvido” nesse território silencioso e insondável, os medos, angústias e pequenas alegrias.


Em A Morte na alma, Camus evoca a condição de estrangeiro, visitante de um país, navegando pelo desconhecido, entre ruas, cafés, jornais, língua diferente e uma permanente sensação de deslocamento daquela realidade. Em outro ensaio denominado Amor pela vida prossegue narrando suas viagens, desvendando paisagens do mediterrâneo, se misturando com os claustros, esculturas e as paisagens. Pôr fim, no Avesso e o Direito (mesmo título dado ao livro) uma mulher recebe uma herança e como se sente perto da morte resolve comprar um jazigo luxuoso para abrigar seu corpo. A adoração pelo próprio jazigo era tão grande que ela começou a visitar sua cova com certa frequência, ajoelhava-se diante de si mesma, “a grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quanto sobre a morte”.


O segundo livro denominado O Primeiro Homem é um romance autobiográfico inacabado, encontrado no ano de 1960 nos pertences de Camus durante um acidente trágico de automóvel que ceifou sua vida aos 47 anos. A trajetória do personagem Jacques Cormery é “quase” Camus descrevendo a si próprio. Aos 40 anos o “personagem” Jacques Cormery regressa ao seu lugar de nascimento por pedido de sua mãe para visitar o túmulo do pai, esse movimento consegue restituir algumas memórias de sua infância e adolescência em Argel. As impressões da casa simples e rústica, os cheiros, os sons, a avó inflexível e austera, a mãe infeliz e desatenta, os passeios com o tio, as memórias da escola, a influência de um professor que de certa forma assume um lugar paterno em sua vida escolar, tudo isso expressa uma volta as suas raízes.


Em uma passagem do livro o personagem principal não encontra sentido em visitar o túmulo de um “desconhecido”, o pai que faleceu em 1914 durante a Primeira Guerra e Jacques tinha apenas 1 ano de idade. Fez isso pelo pedido da própria mãe. No cemitério leu na lápide a curta passagem de seu pai no mundo: 1885-1914. Quando entendeu que o pai morreu com apenas 29 anos de idade e ele como filho tinha 40 anos, decifrou o absurdo da guerra, a ausência de sentido, a desordem do tempo.


“A sequência do próprio tempo se despedaçava em torno dele, imóvel entre os túmulos que não mais enxergava, e os anos deixavam de se ordenar segundo esse grande fluxo que corre em direção ao seu fim”.

O livro também traz reflexões sobre os aspectos sociais e históricos de seu amado país. Nesse período a Argélia ainda era colônia da França. Em algumas passagens da obra Camus retrata a condição das pessoas que viveram nesse conflito. Apesar da distância cronológica as duas obras se entrelaçam, sintetizam de forma direta e genuína a gênese e o estilo de Camus. Um escritor que teve a coragem de se expor e que regressou as origens em um percurso entre passado, presente e futuro, buscou na raiz uma forma de florescer sua escrita. O Avesso e O Direito imprimi seu estilo e ganhará uma maturidade incandescente no livro O Primeiro Homem. A nascente e a foz dessas duas obras se encontram e deságuam em leitores(as) como eu, como nós... que entendem que “uma vida, só deveria caber na palma de uma grande paixão”.


Como escreveria o próprio Camus: “simplesmente, no dia em que o equilíbrio entre o que sou e o que digo, talvez nesse dia, e mal ouso escrevê-lo, conseguirei construir a obra com a qual sonho. O que quis dizer aqui é que ela se parecerá com o Avesso e o direito de uma forma ou de outra, e que irá falar, de certo modo, de amor”.


Bendito seja Camus, ou como escreveu o poeta Castro Alves "Oh! Bendito o que semeia / Livros à mão cheia / E manda o povo pensar! / O livro, caindo n’alma / É germe – que faz a palma / É chuva – que faz o mar!".

Bendito seja aquele(a) que sabe de onde veio e para onde vai!


Bibliografia:

O avesso e o direito/ Albert Camus; tradução de Valerie Rumjanek. -9° ed.- Rio de Janeiro: Record, 2018.

O primeiro homem/ Albert Camus; tradução Tereza Bulhões Carvalho da Fonseca, Maria Luiza Newlands Silveira. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.


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