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BEBÊ RENA E A DIFICULDADE DO HOMEM EM SE ASSUMIR COMO VÍTIMA




Fazia tempo que uma série não mexia tanto comigo como a Bebê Rena, da Netflix, que vem ocupando o top 1 das mais assistidas no Brasil e em diversos países. A produção 18+ consegue o raro equilíbrio entre manter uma estrutura narrativa mainstream e entregar um conteúdo profundo, perturbador e sem respostas definitivas, abrindo portas para discussões super importantes.


A série conta a história de Donny Dunn, um barman e aspirante a comediante que após uma pequena gentileza com Martha, uma desconhecida que entra no bar onde ele trabalha, acaba tendo a vida gradualmente invadida pela mulher. Martha começa a frequentar o bar diariamente, e com as brechas deixadas por Donny, vai se tornando uma stalker obsessiva, sendo uma sombra do protagonista em sua vida privada, profissional e amorosa.


Até aí, poderia ser mais uma série policial ou de suspense, mas a franqueza do ponto de vista do protagonista, interpretado por Richard Gadd, que viveu a história na vida real e expôs toda sua fragilidade no roteiro, traz uma visceralidade que raramente a gente encontra em grandes produções. Há várias camadas na história, mas quero aproveitar o momento para focar em questões da masculinidade que a produção me fez refletir.


Vou dar spoilers leves, citando alguns acontecimentos da série, mas sem entrar em detalhes:


Quando o homem é algoz e vítima 

Em Bebê Rena, vemos um jovem adulto com o psicológico todo fodido. Inseguranças, carências, baixa autoestima e um desejo incomensurável por ser visto e reconhecido pelos outros.


Nas situações em que ele encontra pessoas que o fazem mudar a visão sobre si, ou seja, que inflam seu ego, que exaltam suas qualidades, Donny cria uma codependência absurda com elas. Aos poucos, essas pessoas se revelam problemáticas, manipuladoras e começam a praticar vários abusos e excessos. O protagonista não consegue impor limites, dizer não, e vive experiências super traumáticas.


Por outro lado, quando conhece uma mulher com uma afeição genuína com ele, que o aprecia, mas aponta suas contradições, Donny se fecha, não consegue ser verdadeiro e mostrar o que de fato sente. Ele cria uma máscara insustentável com medo de ser descoberto naquilo que enxerga de si mesmo, um impostor, um homem indigno de afeto. 


E o pior é que ele ama essa mulher, mas não dá conta: é tanta vergonha, auto condenação e medo da desaprovação do mundo que ele demora demais para ser genuíno com ela. Acaba sendo babaca com essa pessoa, a rejeita, a coloca em risco.


Chega um momento da série em que Donny dá uma “coringada”. No meio de um show de comédia, revela a desconhecidos tudo o que guardou durante anos: os traumas do passado, os abusos. 


Foram anos com a mente aos frangalhos e tendo a vida quase destruída pela stalker até ele expor sua vulnerabilidade. Donny demorou demais para conseguir assumir para si e para o mundo suas fraquezas, suas dores, e isso destruiu suas relações. 


Existe um componente evidente da cultura patriarcal nessa demora. É o homem que se esconde por medo de “se rebaixar”, de aparentar ser “menos homens”, com medo de perder o reconhecimento de seus pares. Mas nem sempre a máscara que o homem cria diz respeito apenas à autopreservação para manter sua persona. Muitos homens não compactuam com a cultura patriarcal, mas se contrapor a ela requer uma coragem super difícil de assumir.


Se existe uma hostilidade imensa às mulheres vítimas de abuso, o mesmo ocorre com os homens. O homem praticamente não tem amparo institucional nenhum quando é vítima de violência psicológica ou sexual. É esperado que o homem saiba se defender sozinho, e assumir publicamente que não conseguiu se defender é de uma vergonha absurda. É o desafio primeiro de assumir para si que foi vítima e o desafio posterior de ser reconhecido socialmente como vítima.


Até isso acontecer, o homem fica guardando internamente todos os traumas e sendo essa bomba relógio para si e para os outros. A vítima se torna algoz, e quando não reproduz a violência proativamente, se tornando o abusador, perpetua silenciosamente com sua fraqueza, falta de postura, de sinceridade, de comprometimento com as relações.


Não é nem um pouco salubre a vida da mulher hétero: se há os brutos de um lado, há os frágeis, como Donny, de outro. Mas é nesses que devemos investir – e digo interessadamente, por me identificar com eles.


Homens: falemos

O que mais me perturbou em Bebê Rena foi identificar vários traços do protagonista em mim. Um cara bacana, gentil com as mulheres, mas dúbio, inseguro, que demonstra querer se aprofundar nas relações, mas que logo coloca barreiras. Com dificuldades tremendas em expor os incômodos e abrir o jogo sobre o que quer e o que está sentindo.


Certa vez, uma terapeuta me disse que se eu não encarasse minha carência emocional seria tóxico em todas minhas relações com as mulheres. Dito e feito: rompimentos traumáticos desde então com quem assumi algum nível de comprometimento. Mas sem nenhuma violência clássica (agressão, traição, nada disso), mas violências sutis, feitas e recebidas, onde consigo ver claramente esse lado do bebê Rena que não consegue se mostrar de cara limpa à outra pessoa.


Claro que a série é muito mais dramática e pesada que isso, mas é praticamente impossível encontrar um homem que em alguma medida não tenha inseguranças, baixa autoestima, carências, disfunções sexuais, desejo por reconhecimento. Os que assumem essas dificuldades ainda são muito poucos, mas aumentando, e espero que Bebê Rena seja um estímulo para nós olharmos às próprias fragilidades.


Se a gente não quer abusar e nem ser vítima de abuso, e se de fato somos um aliado da luta das mulheres, só mesmo reconhecendo nossos traumas. Falar é sempre um ótimo primeiro passo, a cura pela palavra que deu origem à psicanálise e é a base de tantos métodos terapêuticos. Richard Gadd falou e roteirizou essa bela série, e que a gente também possa olhar para si, se expor, se melhorar como pessoa, ser mais responsável com as mulheres e apoiar outros homens.


Fonte da imagem: Frame da série Bebê Rena, retirado da Netflix.

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2 comentarios

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Acho que esse drama relata bem o que está aqui nesse texto: a penúria masculina em acessar sua vulnerabilidade. Para as mulheres, existe uma grande ansiedade em conseguir experimentar isso na relação com homens. Consigo até lembrar de cenas de "Sex and the City" no qual boa parte da personagens gasta muito tempo decifrando com as amigas os machos da vez, como se toda relação com homens fosse um grande enigma porque eles não conseguem dizer realmente como se sentem na relação. De fato, vivi isso há alguns minutos com uma amiga me procurando para conversar. Sinceramente, espero que essa realidade mude. É bem difícil viver esse processo.

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Contestando a

Pode crê, Carla. Mudar tão cedo isso não vai não kkkk, mas já dá para encontrar uns homens olhando para isso

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