Embora as práticas sexuais não normativas existam desde que o mundo é mundo, os fetiches, fora da convenção moralista cristã, sofrem demais com ideias preconcebidas dos que recalcam a sexualidade em prol da aceitação social plena.
Em dado momento da história da humanidade, determinadas práticas foram consideradas doenças pela psiquiatria e precisavam lidar com o cenário caótico de medicalização e rituais de conversões nas diversas internações que o indivíduo ‘’perverso sexualmente’’ acabava por vivenciar.
Tudo fora da normalidade-papai-e-mamãe no sexo era visto como monstruoso e vergonhoso.
Inclusive, problematiza-se aqui essa dita ‘’normalidade’’ não apenas dentro da dimensão heterossexual compulsória, mas como a naturalização das violências de gênero sobem neste palco e fazem grande sucesso entre atores e plateia.
As consideradas sexualidades desviantes ou marginalizadas (lê-se práticas fetichistas, homossexualidade, transexualidade, sadismo e masoquismo) ganham espaço nos consultórios médicos do século passado e pasmem, até hoje sofrem com os estigmas e preconceitos criados ou alimentados nesta época[1].
O BDSM é uma das práticas que lida até hoje com a repulsa e curiosidade (não necessariamente separadas) de muitos.
Enquanto um estilo de vida (como defendem os praticantes) e prática sexual, o BDSM já foi sim considerado patologia, modificando esse panorama para uma prática marginalizada, até os dias de hoje em que podemos afirmar que vem ganhando força e adeptos cada vez mais atraídos pelo universo curioso da perversão sadomasoquista, fortemente influenciados pelo boom de determinadas produções cinematográficas.
No acrônimo:
Bondage, prática associada à imobilização;
Disciplina sexual, obediência, punições e castigos. Além da dominação;
Submissão (duplinha da dominação), trabalhada a partir de jogos e cenas de humilhação e violação. Além da representação do sadismo;
Masoquismo, relacionado a utilização da dor para sentir prazer sexual.
Em meu texto ‘’Seu fetiche pode e o dele não?’’, produção que abre meus trabalhos como colunista no Soteroprosa, proponho uma breve reflexão a respeito do falso moralismo que não desgruda das práticas sexuais, sejam quais forem, normativas ou não.
Já em ‘’Mulher que gosta de dar: de quem é esse problema’’, adiciono ao debate a dimensão de gênero, onde busco refletir que: para alguns corpos, mesmo que com estranheza, algumas práticas são mais aceitáveis do que para outros. Aqui se pontua a localização social de determinadas representações corpóreas.
Moralizar o gozo é antiquado, mas a gente continua caindo no buraco da repressão sexual e deixando de viver plenamente a nossa sexualidade. Piorando ainda mais a situação quando nos achamos no direito de interferir na sexualidade do outro.
Especificamente, no caso do BDSM existe um adicional que frita a mente das pessoas: o ar perverso presente na prática de dominar ou ser dominado. Mas, me diga você, o que há de tão ruim em ser amarrado, receber tapas, performar a cena que excita desde de que: com combinados e consenso?
É claro que BDSM é muito mais que isso e a linha que o separa da violência é exatamente o consentimento. Esse é o ponto de legitimação da prática, afinal, ‘’se o indivíduo sente-se emocional e fisicamente confortável com o que realiza, então é legítimo’’ (Zilli, 2007, p. 69).
Rainha Agatha Chandra, dominatrix entrevistada pelo Soteroprosa[2], expõe que ao assumir nossos fetiches estamos respeitando a nossa sexualidade, sendo o BDSM, uma possibilidade de vivê-la livremente em um processo que vai sendo construído ao longo das experiências.
Uma coisa é clara, nenhuma vivência vai garantir um orgasmo tão intenso como aquela que se pratica com o mínimo de autoconhecimento. Uma vez que, conhecer o funcionamento do próprio corpo, as diferentes áreas e suas respostas aos estímulos, bem como acolher os desejos e fetiches, é requisito mínimo para uma boa gozada (além da escolha alinhada ao/a parceiro/a sexual ser importante também).
Reconhecer a íntima relação entre a dor e o prazer ainda é um desafio para muitos, entretanto, a curiosidade pelas práticas sexuais não convencionais tem conquistado mais do que os discursos repressivos.
Medicalizar a sexualidade já não é mais uma prática recorrente, entretanto, as origens e os resquícios se perpetuam até hoje. Mas, o questionamento aqui é o que seria uma sexualidade passível de ser medicalizada?
Quando investigamos, na realidade estamos falando, esmagadoramente, de casos onde as pessoas apenas a vivenciam livremente, deixando em segundo plano (ou até mesmo renegando) determinadas normativas sociais.
Segundo a moral cristã, o único objetivo para o sexo é a perpetuação da espécie. Claro que não é bem assim, mas o poder acerca do discurso do sexo está sendo muito bem disputado. Algo que me faz pensar: a quem interessa a minha prática sexual?
Quem na história da humanidade olhou para outro ser e acreditou que aquilo que aquela pessoa faz entre quatro paredes é de interesse público?
Bem, acredito que o problema não esteja no que se faz, mas sim no que se diz. Na ideia que se vende e se perpetua, afinal, ideias colonizam mentes.
Controlar os corpos através da sexualidade não é uma história nova.
Mas e você? O que pensa sobre o BDSM e outros fetiches?
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Notas:
[1] Em ‘’A história da sexualidade’’, de 1976, Foucault desenvolve melhor essas dimensões. Além de: Lanteri-Laura (1994) e Oosterhuis (1997).
[2] Podcast disponível no Spotify. Clique aqui.
Referência:
Zilli BDC. A Perversão domesticada – estudo do discurso de legitimação do BDSM na internet e seu diálogo com a psiquiatria [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.
É importante falar e desmistificar o bdsm
Para mim é algo que é do prazer de cada e vc foi perfeita quando disse que o “autoconhecimento” é fundamental no processo do prazer. Uma pena em relação ao sexo ainda existir muito tabu.