‘Batem a porta” é o mais recente filme de M. Night Shyamalan. Se você circula pelo universo cinematográfico, ou pelo menos tem algum grau de curiosidade, esse nome não soa estranho. O diretor é conhecido hoje em dia por ser uma verdadeira caixinha de surpresa, com filmes oscilando entre obras de arte (o sexto sentido - 1999, sinais - 2002, corpo fechado - 2000, fragmentado - 2016) e filmes tão ruins que chegam a ser cômicos (tempo - 2021, fins dos tempos - 2008, avatar: o último mestre do ar - 2010). A cada novo lançamento a crítica aguarda na expectativa, esperando qual a próxima surpresa desse diretor curioso. No universo de Shyamalan só existem duas opções, dois extremos e nada mais: ou o filme é incrível ou é risível. De qualquer forma, as duas possibilidades guardam a marca desse diretor original.
“Batem à porta” é um filme de 2023, adaptado de um livro escrito por Paul Tremblay, “O chalé do fim do mundo” (2018). Apesar das semelhanças, existem muitas diferenças entre as versões, principalmente quando o assunto é o fim da trama. O objetivo desse ensaio não é comparar os dois trabalhos, nem mesmo propor a menor das comparações, já que mídias diferentes possuem regras estéticas diferentes. A comparação acaba sendo um esforço inútil ou até perigoso, como vai ficar claro daqui a pouco. Por isso esse ensaio concentra todas as suas energias no filme em si, no universo interno desenvolvido por seu diretor, incluindo toda sua bagagem estética.
O filme é muito direto, não perde tempo com grandes exposições de enredo, muito menos com algum narrador over descrevendo as coisas nos bastidores. Logo de início somos apresentados aos personagens principais, assim como ao cenário onde tudo acontece (a cabana). Temos aqui um casal gay, com sua filha asiática adotiva, provavelmente de férias, todos na esperança de encontrar naquela simples cabana um espaço tranquilo e agradável. Como o início do enredo é imediato, sem nada de introdutório, começamos a conhecer os personagens apenas ao longo da história, através de rápidos flashbacks. Como “batem à porta” é um filme de suspense, o uso desse recurso cinematográfico é muito bem-vindo, já que os próprios personagens são cercados por uma névoa de mistério. Na verdade, o espectador começa a história em um completo vácuo, sem nenhuma informação sobre nada ou ninguém. E é nesse momento que os visitantes aparecem; quatro figuras normais, nada de extraordinárias, com apenas um único detalhe incomum: todas carregam armas brancas, sejam machados, porretes ou facas, afirmando ao mesmo tempo que fazem parte de uma missão épica. Segundo eles, o casal da cabana precisa fazer uma escolha urgente: ou matam alguém da própria família ou o mundo vai acabar. Seriam esses visitantes pessoas com problemas mentais, ou fundamentalistas religiosos, ou, talvez, exista algo de verdadeiro em suas profecias? Pois é... esse é o núcleo de toda a cadeia de suspense.
Como é possível perceber logo de início, o filme é minimalista, com uma história centrada em uma simples cabana no meio da floresta. Com um orçamento de apenas 20 milhões (uma pechincha, se comparada a outros filmes hollywoodianos), "batem à porta" faz uso de cada detalhe, desde objetos cênicos, até paisagens de fundo. Não existe aqui múltiplos cenários, naves espaciais, perseguições de carro... nada disso. Shyamalan é conhecido pelo uso de cenários simples, extraindo de cada um deles o máximo de suspense. Não é preciso aqui castelos assombrados ou outros planetas, muito menos explosões ou efeitos especiais. De uma forma bem hitchcockiana, os melhores suspenses são construídos no e pelo cotidiano. O extraordinário surge do ordinário, do comum, do óbvio. A rotina sempre produz os melhores enredos, por mais entediante que ela pareça à primeira vista.
Ao contrário de muitos críticos de cinema, boa parte criticando o filme, eu acredito que “batem à porta” conseguiu produzir um ótimo clima de suspense. Provavelmente, a crítica recebida foi muito mais resultado da comparação com o romance, prática não muito recomendável, já que é impossível comparar mídias diferentes (linguagem escrita e visual). Seria o mesmo que comparar Mbappé e Hamilton, ou seja, comparar dois esportistas dentro de regras muito diferentes. Claro que “batem à porta” não é o melhor dos trabalhos de Shyamalan (ainda prefiro “fragmentado”), mas é, sem dúvida, um retorno interessante ao modelo hitchcockiano... o minimalismo.
Como qualquer pupilo de Hitchcock, Shyamalan sabe muito bem que a formula de qualquer filme de suspense é o medo do desconhecido. Você pode não acreditar, mas não são os monstros, ou espíritos, ou robôs assassinos, os protagonistas em um filme de suspense, ou mesmo de terror, mas sim os personagens e a forma como se relacionam com o desconhecido. Por isso filmes como o primeiro “lugar silencioso” - 2018 ou “it a coisa” - 2017 são excelentes no preparo do suspense, enquanto suas continuações, por outro lado, decepcionaram bastante. Em outras palavras, depois que os monstros são revelados, e o cenário esclarecido, o que sobra? Talvez apenas o tédio. Nesse sentido, “batem à porta” é uma verdadeira aula sobre como construir um ótimo suspense.
Não podemos esquecer também das performances em jogo. É normal, até mesmo no próprio Oscar, associar boa performance com grandes explosões de energia, loucura ou ódio. Performances mais sutis são pouco lembradas, como se a agressividade cênica fosse sempre a única regra disponível. David Bautista, famoso por seus papeis na Marvel, oferece um show de atuação, muito mais pela sutileza da sua performance, contrastada com seu corpo imenso e musculoso. Além disso, a atriz mirim, filha dos personagens principais, Wen (Kristen Cui), fez um excelente trabalho. Em geral, as crianças nos filmes de Shyamalan são estranhas, robóticas, quase sempre fora de sintonia com a realidade, como acontece nos filmes “Sinais” ou “Fins dos Tempos”. Felizmente, esse não é o caso de “batem à porta”. Kristen Cui é fofa, carismática e sincera em sua atuação.
O tema da inclusividade faz parte também do filme, como é comum em Hollywood nos últimos tempos. O casal protagonista, pais de Wen, uma criança asiática, são gays. Apesar da importância dessa pauta, os personagens não se tornam simples representações coletivas de minorias, mas ganham profundidade psicológica, circunstância rara em filmes mais politizados. Ou seja, enquanto personagens eles não são GAYS, assim como a menina não é ASIÁTICA. Eles são personagens específicos com trajetórias bem definidas. Eles não são simplesmente pretextos dentro de um debate político genérico, o que torna o tópico da inclusividade muito mais fluido, sutil e, portanto, eficaz. Essa é uma ótima forma de incluir grupos minoritários em filmes ou séries, ou seja, dissolvendo cada um deles em narrativas complexas e bem estruturadas, como aconteceu com a série da Netflix “The Sandman”.
Enfim, depois do seu péssimo filme mais recente, “tempo” (2021), dentro de uma série de outras decepções, Shyamalan retorna com força com um filme de qualidade, seguindo os passos de outros sucessos do passado (o sexto sentido e sinais). Espero que outras grandes surpresas apareçam no futuro.
Referência da imagem:
https://www.youtube.com/watch?v=p9lmqoZTQOM
Seu suspense em falar do que se trata o filme, me pegou! Amo cinema com sutileza. Quero ver esse filme!
Massa seu texto,Thiago,só faltou informar onde vc assistiu e onde assistir,não vi essa informação no texto. Filmes de cenário único precisam ser muito bem feitos,senão consomem o expectador e o suspense sai da tela e vai pra sala!
Admito que suspense (terror muito menos) não faz meu gênero de filme preferido. Mas gostei da resenha que você trouxe e acho que esse filme pode ser uma boa escolha de algo diferente e que permita pensar, refletir, que são coisas que prezo em filmes, em séries, em determinados realities. Esse já entrou na minha lista pra assistir.