Não sei se você lembra, mas no ano de 2020, em plena pandemia, quando as coisas pareciam fora do controle e um completo caos, um discurso curioso brotou no horizonte, ganhando os quatro cantos das redes sociais. De um lado, aqueles a favor do lockdown, entendidos como defensores da vida, do coletivo, dos afetos, e, do outro, os contrários ao lockdown, considerados egoístas ou vítimas de interesses obscuros, sinistros, grotescos e por aí vai. Claro que hoje já percebemos o quanto o cenário jamais foi simples assim, jamais foi uma mera escolha entre bem e mal. Por exemplo, hoje é meio óbvio que ficar em casa na pandemia não é necessariamente sinônimo de segurança ou saúde, já que violências domésticas e crises mentais aparecem o tempo inteiro, assim como sair de casa e defender o retorno da economia não é equivalente a egoísmo, em especial quando boa parte da população brasileira vive de empregos informais sem qualquer tipo de suporte, a não ser a renda incerta que recebe desses mesmos trabalhos.
Em outras palavras, hoje complexificamos mais as coisas, oferecendo contornos mais claros e mais profundos, ainda que nem sempre convenientes. De qualquer forma, é muito curioso que em momentos de crise, e em especial em instantes de completo desamparo, problemas complexos tendem a ser moralizados, reduzidos em termos de bem e mal, certo e errado. Mas por que isso acontece? Por que as pessoas insistem nesse tipo de recurso retórico? Existem três explicações circulando por aí, sendo as duas primeiras as mais populares, e também as mais liberais, embora eu pessoalmente não seja muito fã. A primeira delas é por um motivo epistemológico. Ou seja, pessoas moralizariam o debate, simplificando os contornos da experiência, porque não pensam direito, não são muito espertas, não estudaram o suficiente. O segundo critério, é o ético. Aqui, a moralização seria um defeito de caráter, envolvendo pessoas manipuladoras que querem estragar a esfera pública e seu espaço civilizatório de debates e reflexões.
Já o terceiro critério defendido por mim, é o estético, muito presente na psicanálise, além da própria antropologia com seu método etnográfico. Nesse cenário, a moralização dos debates, e de problemas complexos, não é um defeito cognitivo (epistêmico), muito menos ético, mas reflexo de uma busca por sentido. Isso significa que a moralização é algo pragmático, reduz complexidade, retira dúvidas, crises e riscos, sendo muito útil no processo de organizar a experiência. Ela é muito mais uma matriz de significação que costura as brechas de cenários complexos, contraditórios e contingentes. Nesse caso, podemos entender esse gesto moralizante como uma atitude ancestral, um ganho da nossa espécie nesses 300.000 anos de existência. Pessoas moralizam os debates, transformando tudo em uma batalha entre anjos e demônios, não por escolha, ou por defeito, mas por necessidade. Em termos psicanalíticos, a moralização é um sintoma de um corpo em risco, de uma existência simbólica ameaçada pelo impacto do "imsimbolizável", do Real, aqui chamado de CONTINGÊNCIA.
Se o mundo é dividido entre bons e maus, significa que a escolha é simples, sem custo, sem risco. Na verdade, se você pensar bem, não existe escolha. Se bons e maus governam o mundo, só existe, de fato, uma única alternativa, a certa. A outra é vista como um erro, um desvio, uma farsa. A moralização dos debates retira o peso, e até a responsabilidade, das escolhas feitas, removendo qualquer vestígio de contingência. Ao invés de ser confrontado com uma infinita gama de alternativas, com várias implicações inesperadas, e vários custos dos mais variados tipos, caindo naquilo que Weber chamaria de “paradoxo das consequências”, temos o contrário, ou seja, um espaço simples com decisões claras e confortáveis, uma espécie de garantia existencial. É uma ótima estratégia quando se busca uma boa noite de sono, sem pesadelos ou sonambulismo, o que William James chamou de "férias morais". No fim desse processo de significação quase adaptativo, é possível extrair a certeza de que lá fora o mundo me espera de braços abertos, muito bem organizado, assim como convenientemente tecido por categorias bem estruturadas (vilões, demônios, gados, zumbis, vermes, psicopatas, crápulas, fascistas, comunistas, além de muitas outras).
Imagem retirada da página: https://museudememes.com.br/o-messias-chegou-mas-qual
Apesar da importância prática da moralização, e eu até diria ancestral, já que foi útil na trajetória da nossa espécie nesses 300.000 anos, existem quatro motivos que me levam a suspeitar dessa prática tão comum e tão previsível, até mesmo na minha própria escrita e comportamento:
1) Depois de anos e anos estudando textos psicanalíticos, e sendo influenciado por uma ética alternativa, muitas vezes até estranha, eu parto de um princípio freudiano meio óbvio, muito presente em seu clássico “mal estar na civilização” (1930): qualquer um é capaz de fazer qualquer coisa a qualquer hora, dependendo de uma certa economia libidinal, ou seja, dependendo de um certo arranjo de afetos. Por esse motivo, a fronteira entre louco e são, bom e mal, pai de família e assassino, é muito menor do que a gente acredita. Por razões pragmáticas, e até de sobrevivência, o senso comum essencializa essas fronteiras, embora todas elas sejam mais fluidas do que parece. Além disso, a ética na psicanálise não é um mérito, um tipo de troféu que você segura nas mãos e divulga em suas redes sociais. Segundo Freud, a ética, entendida aqui como as condições mínimas de conveniência em comum, é muito mais uma roleta, um acaso, um tipo de jogo de azar, como o poker ou sua cartela da lotofácil comprada no último sábado. Se você tiver sorte, vai ser um membro funcional da sociedade, com habilidades sociais convenientes, além de seguir a expectativa de instituições e critérios. Em outras palavras, vai ser um bom e comportado neurótico. Mas se não tiver sorte, naquilo que Freud chamou de economia libidinal, provavelmente vai sair pela rua pelado se masturbando, enquanto denuncia alguma invasão reptiliana no Brasil.
2) Moralizar debates não oferece nenhuma vantagem epistêmica ao sociológo. Ou seja, incluir um julgamento moral em uma análise qualquer não contribui em nada dentro um texto sociológico. Por exemplo, Gilberto Freyre, em seu clássico da década 30 “Casa Grande e Senzala”, descreve a existência de donos de escravos “gentis”, figuras que até consideravam seus escravos como partes da família. Lélia Gonzalez, ao ouvir esse tipo de argumento, provavelmente diria: “Isso não me interessa. O fato de terem existido donos de escravos mais virtuosos do que outros, não altera o raciocínio estrutural de fundo”. O fato deles serem maus ou bons, honestos ou desonestos, cheirosos ou fedorentos, não afeta em nada o resultado da análise. O mesmo raciocínio eu aplico em Bolsonaro e as mortes por Covid. Muitos dizem que Bozo é mau, desprezível, e por isso as mortes aconteceram, como simples resultado do desvio de caráter de uma figura bizarra que programou cada detalhe de um jeito maquiavélico. Tirando um pouco o cheiro de paranoia desses argumentos, claro que não tem como descartar completamente essa hipótese, mas esse detalhe moral não altera em nada o fato de Bozo ser responsável pelas mortes. A responsabilidade não é resultado de uma falta de caráter, como um certo raciocínio populista nos faz acreditar. Ele seria responsável mesmo se fosse do bem, gentil e amoroso, da mesma forma que uma pessoa branca reproduz o privilegio da sua cor de pele não por ser má, ou egoísta, ou alguma dondoca rica que xinga entregadores de Ifood, mas por um detalhe estrutural.
3) Existe também um componente político preocupante. Ao simplificar o campo de problemas, a moralização retira qualquer possibilidade de um debate sincero e real, já que o outro é logo desconsiderado como interlocutor. Nesse cenário, não existe, nem de longe, chance de debate, a não ser falas unilaterais e consideradas como homogêneas. Por conta disso, existiria, supostamente, uma coisa lá fora chamada ESQUERDA, um núcleo homogêneo, simples e óbvio de alternativas e valores. Mas será mesmo? Seria o campo de escolhas tão simples? Claro que essa esquerda pode acabar votando em Lula, por exemplo, mas ainda assim votariam pelas mesmas razões? A esquerda pós-estrutural e dialética são idênticas? Mobilizam os mesmos parâmetros filosóficos, sociológicos e valorativos? Feministas negras gostam de feministas liberais? Teóricas trans gostam de teóricas queer? Marxistas gostam de pragmatistas? Chomsky gostava de Foucault? Camus gostava de Sartre? Spivak era fã de Kristeva? Žižek admira Butler? E a resposta é um óbvio e doloroso NÃO!!! É preciso trazer a contingência de volta ao campo político, como se tinha na clássica Ágora grega com Górgias e Protágoras, deixando de lado a ilusão de uma polaridade homogênea entre ESQUERDA (BEM) e DIREITA (MAL). As coisas são mais complexas do que parece e cabe a nós, cientistas, manter esse tom de complexidade, embora não seja conveniente a ninguém, embora não seja o que querem de nós.
4) Dentro de um mundo capitalista e liberal, a moralização alimenta nosso ego, fazendo parte de um circuito simbólico conveniente. Ela serve como uma maneira de afirmar a nós mesmos nas redes sociais, aquilo que chamam de “Virtue Signalling”. A moral aqui é entendida como um mérito, um tipo de troféu que pode ser visto, acolhido e, principalmente, compartilhado. “Olhem pra mim, eu sou bom, sou honesto, sou um membro funcional da sociedade!!!”
Referência da imagem:
Montagem feira por mim, com as seguintes imagens:
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