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ANIMAIS NÃO HUMANOS POSSUEM INTELIGÊNCIA?




O estudo da Biologia me trouxe uma série de reflexões interessantes ao longo da minha trajetória. Dentre elas, tenho pensado sobre como a humanidade gosta de categorizar certos aspectos do mundo, que não necessariamente existem de forma categorizada. Um exemplo disso é a forma como classificamos o sexo Biológico na nossa espécie – masculino ou feminino. Mas ao observar o desenvolvimento dos órgãos reprodutivos, notamos um limiar contínuo entre os dois.


As nossas classificações observam apenas a forma final de como os órgãos reprodutivos se apresentam. Na natureza, o que se observa é um processo complexo de desenvolvimento. O chamamos de masculino e feminino começam como tecidos iguais, indistinguíveis. Dependendo do processo, podem resultar em úteros, ovários, endométrios ou em próstatas, epidídimos e corpos cavernosos, ou mesmo em uma miscelânea de tecidos, que resultam nas diversas formas de intersexo presentes na nossa espécie.


Noto que a mesma coisa acontece com o que consideramos inteligência. Muita gente me pergunta: “Mas Jessika, você acha que os animais têm inteligência, conseguem aprender, ter sentimentos?”. Como se inteligência fosse uma caixinha bem delimitada no mundo animal: ou tem, ou não tem. Essa maneira dual de observar as coisas dificulta o entendimento das questões em Biologia, talvez funcione para as Ciências Humanas, e é até um artifício interessante para fins didáticos.

Dessa forma, a minha resposta é: Eu não sei, minha gente.


Eu não sei se inteligência, aprendizagem, sentimentos sejam coisas que possam ser classificadas como “tem” ou “não tem”. Por consequência, eu não sei se animais não humanos têm ou não essas coisas. O que sei é que os animais não humanos apresentam comportamentos fantásticos, sistemas nervosos muito curiosos, estratégias engenhosas de lidar com os desafios de estar vivo. Tudo isso por meios tão singulares, que a questão de ter ou não inteligência- seja lá o que ela signifique- vira uma questão meramente trivial, sem maior importância. E é nesse tom que venho expor para vocês uma série de estudos com primatas não humanos para a gente abrir a cabeça e quebrar as fechaduras.


Em 2017, um estudo feito com gorilas nascidos em cativeiros detectou que sozinhos eles foram capazes de aprender a limpar seus alimentos. É que dentre os primatas, observa-se o chamado aprendizado social – quando indivíduos observam seu bando fazendo alguma coisa, e tendem a reproduzir o mesmo comportamento. Mas não foi isso o que aconteceu na questão dos gorilas.


Veja só que interessante: A população de gorilas em cativeiro recebeu maçãs cobertas de areia e não tinham tido contato prévio com populações nativas. Nenhum indivíduo foi privado de comida antes, mas todos eles apresentaram comportamentos de limpar a maçã, de diversas maneiras- com o dedo, com a mão, com o antebraço, batendo contra a palma da mão ou contra o chão para desprender os grãos. O interessante é que comportamentos semelhantes são observados também em gorilas da mesma espécie em seu hábitat natural.


Ou seja, o comportamento de limpeza não precisa ser testemunhado para ser executado. Vale ressaltar que limpar os alimentos é algo muito adaptativo e bem comum em primatas, esse processo ajuda na retirada de parasitas e contaminantes, além de evitar possíveis espinhos ou detritos danosos para a integridade dos dentes. Logo, pesquisadores argumentam que o comportamento de limpeza possa ter sido algo selecionado na nossa linhagem. Fica então o questionamento: higienizamos nossas verduras porque somos inteligentes e astutos, ou porque isso foi selecionado ao longo da nossa história evolutiva?


“Ah, Jessika, mas os gorilas fazem essa limpeza de forma mecânica, não raciocinam. Já os seres humanos usam antibacterianos, raciocinam a melhor forma de armazenar os alimentos”. Bem, não foi isso que o estudo mostrou, os gorilas testaram várias formas de retirar os grãos de areia da maçã com as ferramentas que tinham, se fosse algo puramente mecânico, apresentariam uma só estratégia. Entendem a complexidade dessas questões?


Continuando agora com mais um estudo também com primatas. Um estudo um tanto curioso publicado em 2014 revelou uma série de estratégias inovadoras desenvolvidas por Chimpanzés para invadirem campos agrícolas sem serem detectados. O estudo foi realizado em florestas de campos de milho no Parque Nacional de Kibale na Uganda.


Foram 20 dias de estudos com armadilhas de vídeo. As filmagens detectaram um total de 14 eventos de invasão de plantações. A grande questão neste estudo é que os Chimpanzés são animais diurnos, com capacidade limitada de visão durante à noite. No entanto, para evitar possíveis encontros com humanos, eles começaram a desenvolver o comportamento de atacar as plantações à noite, junto com seus bandos sem serem detectados.


Os cientistas afirmam que esse comportamento se justifica pela rápida mudança da paisagem local, muito impactada por atividades antropogênicas. Assim, ir de galera capturar milho nas plantações é uma forma que nossos parentes primatas encontraram de coexistir com seres humanos sem ser destruídos por eles.


Vale ressaltar que essa mudança de comportamento ocorreu de forma muito rápida, pois antes dos impactos humanos, há menos de um século, o local era repleto de leopardos – um dos grandes predadores noturnos de Chimpanzés. Além disso, apesar da população humana local não se alimentar de Chimpanzés, tendem a ser bem agressivos com os primatas, inclusive usando armas. Veja que essa rapidez na mudança exigiu raciocínio, trabalho em grupo e enfrentamento de dificuldades naturais da espécie. Dessa forma, não é só o ser humano que desenvolve ferramentas para superar seus limites.


Um terceiro estudo curioso publicado em 2012 detectou que Chimpanzés, Orangotangos, Gorilas e Bonobos tem um mecanismo muito sofisticado de tomada de decisões. Eles tendem a raciocinar sobre as possibilidades de sucesso de uma determinada atitude, mobilizando conhecimentos prévios. Sabe como isso foi detectado?

Bem, sabe aquele jogo do objeto escondido em copos emborcados? Então, os primatas foram submetidos a um game parecido. Todos eles recebiam dois pedaços de banana, um menor- que sempre era posicionado no mesmo local, e um maior, que era escondido sob um dos vários copos emborcados apresentados a eles. Ao descobrirem que sempre tinha um pedaço da fruta posicionado no mesmo lugar, eles optavam por pegar o pedaço menor com mais frequência. Afinal, mais vale um pássaro na mão.


Entretanto, na situação em que pedaço incerto da fruta era muito maior, que aquele posicionado no local de costume, o comportamento se inverteu. Eles decidiram arriscar em uma frequência de quase 100%, porque consideraram que a premiação final valia o risco. Esse estudo revelou que os comportamentos de nossos parentes são bem mais sofisticados que imaginamos. Tomar decisões e correr riscos não é algo tão simples de ser processado no cérebro.


Para fechar com chave de ouro, vou trazer para vocês sobre algo que consideramos singularmente humano – a nossa linguagem. Ao contrário do que muitos pensam, a imitação e o aprendizado vocal não são exclusivos nossos. Pássaros, beija-flores, papagaios também aprendem o canto com os seus pares. Além deles, baleias, golfinhos, elefantes e alguns morcegos também são apontados como aprendizes vocais complexos- aqueles que aprendem a emitir sons vocais com o grupo. Em outras palavras, animais não humanos também aprendem a falar.


O interessante é que existem diversos genes presentes em animais humanos e não humanos apontados como os responsáveis pela linguagem animal, são eles o FOXP2, ROBO 1, ROBO 2, KIAA0319, CMIP... e a lista de letras estranhas só cresce. Apesar de não termos conhecimento pleno de como esses genes atuam, sabemos que alterações na sua expressão podem estar relacionados com distúrbios de linguagem na nossa espécie.


De fato, a espécie humana é a única que apresenta linguagem escrita, mas seus genes são os mesmos ligados à linguagem oral e presentes em outros animais não humanos. O que força bastante aquela barreira do “ter ou não ter” que expliquei para vocês no início do texto. Ao que me parece, não são questões duais de presença ou ausência, mas de uma diversidade incrível de contínuos que resultam em muitas linguagens, comportamentos, sistemas nervosos, cérebros e histórias evolutivas.


“Ah, Jessika, mas é um fato que a espécie humana continua sendo a mais inteligente”. Bem, quanto a essa alegação, eu me reservo confortavelmente na mesma posição: Não sei. Nem quero saber, na verdade, não acho que isso importa. Porque essa questão do mais ou menos inteligente no mundo animal não vai nos levar a lugar nenhum. Minha sugestão é que tomemos esse conhecimento para discutir um sistema de vida voltado para a Saúde Única e para a conservação dessa Biodiversidade incrível que estamos perdendo em proporções desastrosas.


Mas caso você queira levar o papo adiante, acho que esse texto trouxe informações bem legais para você impressionar alguém numa mesa de bar. No mais, espero ter contribuído com o seu date, feliz carnaval!

 



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Notas

Daniel B. M. Haun, Christian Nawroth, Josep Call. Great Apes' Risk-Taking Strategies in a Decision Making Task. PLoS ONE, 2011; 6 (12): e28801 DOI: 10.1371/journal.pone.0028801

Damien Neadle, Matthias Allritz, Claudio Tennie. Food cleaning in gorillas: Social learning is a possibility but not a necessity. PLOS ONE, 2017; 12 (12): e0188866 DOI: 10.1371/journal.pone.0188866

Mozzi, Alessandra et al. The evolutionary history of genes involved in spoken and written language: beyond FOXP2. Scientific reports, v. 6, n. 1, p. 1-12, 2016.

Sabrina Krief, Marie Cibot, Sarah Bortolamiol, Andrew Seguya, Jean-Michel Krief, Shelly Masi. Wild Chimpanzees on the Edge: Nocturnal Activities in Croplands. PLoS ONE, 2014; 9 (10): e109925 DOI: 10.1371/journal.pone.0109925

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