Certa vez, nos idos da década de 2010, uma mulher prestadora de serviços de manicure e cristã (frequentadora de uma igreja neopentecostal), disse-me, acerca de pessoas LGBT+, que amava o pecador, mas não o pecado. Há tempos penso nessa frase e em seu significado e entendo que ela expressa exatamente os limites da tolerância religiosa.
Ao dizer que ama o pecador, mas não o pecado, ela, supostamente, convive com os pecadores, estabelece processos de trocas mercantis, exercendo a tolerância. No entanto, o fato de ser tolerante à existência de um(a) outro(a) que é pecador(a), não altera a sua luta diária travada contra o pecado.
Não podemos esquecer que o pecado não existe desassociado de indivíduos, afinal de contas, na leitura religiosa, são homens e mulheres em suas vidas cotidianas, que, a partir do livre-arbítrio, pecam. Ora, se os cristãos, de modo geral, buscam uma vida de acordo com os princípios religiosos, distantes do pecado, suas ações almejam afastar as tentações bem como travar uma luta contra a sua existência.
A tolerância, portanto, cria uma pseudoaceitação do outro. Vida, cultura e sociabilidade humanas, complexas e diversas, são reduzidas entre os que conduzem sua existência de acordo com princípios estabelecidos pelas denominações religiosas e os outros que, na lógica e visão de mundo dos primeiros, manifestam/carregam o pecado.
As escolas, espaços que por natureza devem conduzir os estudantes à compreensão da realidade a partir do conhecimento científico e dentro dos princípios laicos, não estão dissociadas dos conflitos resultantes de leituras dicotômicas da realidade, isso porque a instituição escolar é composta por professores, funcionários, diretores, coordenadores e estudantes que, ao professarem sua fé, carregam seus princípios para o universo educacional.
Reproduzindo uma leitura nós vs. outro, a ciência tem sido derrotada e, na luta travada contra o pecado, a garantia da existência do outro é, em última instância, negada. A exemplo de como os valores religiosos se sobrepõem aos científicos e como a tolerância ao outro é por sua natureza limitada, temos inúmeras denúncias de homotransfobia e racismo ocorridas em colégios públicos e particulares em todo o Brasil.
No mês de setembro, o Ministério Público do Paraná denunciou professora por proferir palavras agressivas direcionadas a uma estudante lésbica, tendo dito, entre outros insultos, que havia “falta de Deus”[1]. Nesse mês de novembro, professora de escola municipal da cidade de Camaçari/BA denunciou estudantes vinculados à religião evangélica por intolerância religiosa por ela ser adepta do Candomblé. Entre as diversas formas de agressões, a professora relata xingamentos como “macumbeira” e “satanás”, tendo sido, até mesmo, apedrejada. Essa situação está em investigação[2].
Esses relatos não são casos isolados, pelo contrário, são recorrentes. Lembro-me de situação ocorrida no ano de 2019 na qual uma instituição de ensino da rede de escolas Adventistas do Sétimo Dia, localizada na cidade de Belém/PA, teve a aplicação de prova na disciplina de língua portuguesa com questões versando sobre “como evitar o homossexualismo”, “homossexualismo tem perdão”, dentre outras[3].
O espaço escolar é um local onde as relações sociais se concretizam e, por isso, apesar de ser o espaço da ciência, do exercício da curiosidade, da descoberta, da alteridade, do novo, do diverso, também coexiste com o preconceito, com a intolerância, com as desigualdades e, por fim, com a tentativa de silenciamento do outro.
O que é apreendido fora do espaço escolar é trazido para o seu interior, reiteradamente, não como objeto para debate e problematizações, mas como doutrina, uma verdade inquestionável. Ou seja, a negação do outro que em muitas instituições religiosas é proferida contra pessoas pretas que manifestam sua fé por meio de religiões de matriz africanas e contra pessoas LGBTQIA+ são reproduzidas e o lugar do diverso e da pluralidade é negado.
É preciso registrar que nesse mês de novembro, Edir Macedo e Rede Record foram condenados pela 10ª Vara Federal de Porto Alegre/RS após a comparação feita pelo pastor em pregação de Natal, no ano de 2022[4]. Na ocasião o referido pastor comparou gays e lésbicas a bandidos[5]. A denominação religiosa por ele conduzida bem como a rede de televisão tem ampla adesão e seus valores são reproduzidos na vida cotidiana, possibilitando o fortalecimento do discurso intolerante e homogeneizador.
Amar o pecador e não amar o pecado traz subjacente a luta contra o mal. A vida em sociedade se tornou uma disputa de nós contra eles. O espaço escolar tem de ser um local de vida, do sem-fim para a curiosidade, a descoberta, o novo, as religiosidades como expressões da riqueza humana e de suas abundantes formas de explicações da vida.
Já construímos arcabouço científico, jurídico e institucional para que a escola seja esse espaço do diverso, de garantia dos direitos fundamentais e humanos. É, portanto, necessário a defesa intransigente do outro, rechaçando as pseudoaceitações, com a escola cumprindo sua função social de formadora em princípios humanistas e democráticos.
[1] https://mppr.mp.br/Noticia/Ministerio-Publico-denuncia-por-homofobia-professora-de-escola-publica-de-Jaguapita-que
[2] https://www.cartacapital.com.br/educacao/demonia-professora-e-vitima-de-intolerancia-religiosa-por-estudantes-de-escola-na-bahia/
[3] https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2019/11/19/familia-denuncia-escola-particular-por-passar-prova-contendo-perguntas-homofobicas-em-belem.ghtml
[4] Friso que o STF, em 2019, decidiu que, diante da omissão legislativa, a homotransfobia é crime inafiançável e imprescritível, nos termos da Lei n. 7.716/1989.
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