ALÉM DO TERROR: O HORROR REAL DE DOLORES CLAIBORNE NA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
- Nieissa Pereira
- há 11 horas
- 6 min de leitura

Esta semana finalizei um dos livros que coloquei como minha meta de leitura para o ano de 2025. Atualmente tenho me dedicado mais ao gênero do terror e do suspense e quem também adora esse gênero literário, sabe que o autor Stephen King é uma referência. Seus livros como It: A Coisa e o Iluminado são sucessos de vendas e até já foram para as grades telas do cinema.
Na busca por conhecer mais obras de King, me deparei com o livro Dolores Claiborne. A obra consiste em um thriller psicológico que nos leva para uma cidadezinha no Maine, onde conhecemos Dolores, uma mulher forte e determinada que está no centro de uma investigação criminal. O livro é escrito de forma que Dolores narra a sua própria história mostrando as dificuldades que a personagem enfrenta como mulher pobre em uma comunidade conservadora. A escrita é intensa e envolve o leitor e King nos apresenta um retrato profundo da condição feminina ao abordar temas como como misoginia, abuso, resistência feminina e justiça, fazendo um mergulho na psique de uma mulher que precisou ser forte e lutar contra um sistema e uma cultura que sempre tentou silenciá-la.
Ao longo deste texto quero trazer alguns trechos que me chamaram a atenção e que vai ajudar a você, caro (a) leitor (a) a refletir sobre a complexidade dos relacionamentos abusivos, a normalização da violência doméstica e o impacto da cultura patriarcal na vida das mulheres.
“Eu estava cansada de brigar com a minha mãe. Eu estava cansada de levar bronca do meu pai. Todas as minhas amigas estavam se casando, conquistando a própria casa, e eu queria ser adulta como elas. Estava farta de ser uma garotinha boba. “
“Joe disse que me queria, e eu acreditei. Ele disse que me amava, e eu acreditei também... e depois que ele falou e me perguntou se eu sentia o mesmo, pareceu que a resposta educada era dizer que sim. “
“Eu estava com medo do que aconteceria comigo se eu não me casasse: se eu teria pra onde ir, o que teria que fazer ou quem cuidaria do meu bebê enquanto eu estivesse trabalhando.
Na cultura patriarcal o destino imposto às mulheres se resume em dois: o casamento e a maternidade. Desde cedo, as meninas são ensinadas que a sua maior conquista deve ser encontrar um bom marido, formar uma família e exercer o papel de esposas e mães dedicadas. Apenas o fato de sonhar com algo além disso, ou até mesmo nem sequer sonhar, se desejaram ter autonomia, uma carreira ou uma vida sem se submeter às amarras conjugais, são vistas como fracassadas, "encalhadas" (outra expressão bem comum é dizer: “vão ficar pra titia”) ou egoístas. Essa pressão social faz com que o casamento seja mais uma obrigação para satisfazer os anseios da sociedade do que uma escolha individual de cada mulher.
Isso fica claro nos trechos mencionados acima, nos quais Dolores observa suas amigas se dedicando à construção de uma família, enquanto ela mesma sente que está ficando para trás. O desejo de sair de casa, alcançar a sua independência e ter o mínimo de autonomia, de tomar as rédeas de sua vida a levam a decidir por embarcar nessa aventura que é a vida conjugal. Em meio a essas pressões, mesmo sem ter certeza sobre os seus sentimentos em relação ao seu parceiro, ela se vê em um beco sem saída e aceita o destino que lhe foi imposto. Motivada tanto pela gravidez quanto pelo medo em relação ao próprio futuro e, principalmente, pela segurança do bebê que carregava em seu ventre, Dolores resolve subir ao altar e dizer as palavrinhas mágicas: “sim, até que a morte nos separe”.
“Foi a primeira vez que percebi que talvez tenha me vendido barato, e talvez tenha feito isso porque achei que barato era o melhor que gente como eu poderia esperar. Eu sei que foi a primeira vez que ousei pensar que merecia ser amada mais do que Joe St. George poderia amar alguém (exceto ele mesmo, talvez). Você pode achar que uma velha insensível como eu não acredita no amor, mas a verdade é que é a única coisa em que eu realmente acredito. ”
A idealização e romantização do matrimônio força mulheres a permanecerem em relacionamentos tóxicos e abusivos, pois desde à infância aprendem que seu valor caminha lado a lado com o seu estado civil. Tomar a decisão de sair de um casamento violento ou infeliz não é apenas um desafio emocional e financeiro, mas também uma quebra de expectativa social. O temor de serem julgadas, apontadas como "mulheres falhadas" ou de ficarem sozinhas as assustam, pois, o machismo e misoginia enraizados na sociedade ensina que uma mulher sem um marido é uma mulher incompleta. O medo e a dependência emocional fazem com que a violência doméstica se perpetue, silenciando milhares de vítimas.
“O meu próprio pai colocava as mãos na minha mãe de tempos em tempos, e eu acho que foi daí que tirei a ideia de que era assim mesmo: só uma coisa que eu precisava aguentar. Eu amava muito o meu pai, e os dois se amavam muito, mas ele era um homem agressivo quando algo o incomodava. “
Além disso, muitas meninas vivem em lares desestruturados e violentos onde presenciam suas mães sendo agredidas pelos próprios pais e, assim, internalizam essa violência e acreditam que essa dinâmica dentro de um casamento é "normal", gerando um ciclo de naturalização da violência, onde o abuso e as agressões não são vistos como algo ruim e intolerável, mas sim como parte da vida à dois. Assim, muitas acabam se relacionando com homens abusivos na vida adulta, repetindo um padrão que lhes foi ensinado inconscientemente.
A baixa autoestima e o sentimento de inferioridade, consequência de uma sociedade que coloca o homem como superior, fazem com que muitas sequer se considerem merecedoras de um relacionamento saudável, baseado em amor, carinho e respeito. Elas acreditam que precisam aceitar o pouco porque nunca foram ensinadas a exigir mais para si. Através da história de Dolores Claiborne, podemos enxergar como dinâmicas tóxicas nos relacionamentos conjugais podem se perpetuar ao longo das gerações e como muitas mulheres acabam presas a ciclos de dor e submissão.
“Até achei que era uma brincadeirinha de amor, ele fingindo estar com ciúmes pra me elogiar... isso pra você ver como eu era boba. Foi ciúme, sim, mas não teve nada a ver com o amor. Foi mais como um cachorro que bota a pata sobre o osso e rosna se você chegar perto demais. Eu não sabia disso na época, então aguentei. E aguentei depois porque achei que um homem bater na esposa de tempos em tempos fazia parte do casamento; “
Ao longo do livro, vamos percebendo que Dolores vive em um casamento infeliz e abusivo com o seu marido, Joe St. George, um homem violento e manipulador. Assim como suas antepassadas e mulheres da sua geração, ela não teve escolha: casar era o caminho natural e correto a ser seguido, e suportar os abusos fazia parte do papel de esposa e da dinâmica entre o casal. Durante anos, Dolores permanece nessa relação tóxica, pois a sociedade não lhe oferece outra alternativa. Seu sofrimento é invisibilizado, sua dor é tratada como apenas algo que acontece e que não há nada ou muito a ser feito, e sua liberdade lhe é negada.
O que finalmente a faz reagir não é a sua própria dor, mas um acontecimento que abala toda a sua família e que faz com que o sofrimento recaia também sobre seus filhos. Essa volta por cima reflete uma característica comum em mulheres que sofrem com a violência doméstica: elas resistem quando as agressões e abusos são direcionados a elas, mas não aceitam quando seus filhos são atingidos. O instinto materno, de proteção fala mais alto, mas ainda assim, essa resistência e a virada de chave não vem sem culpa ou dúvidas, já que elas ousaram desafiar duas instituições sagradas, do matrimônio e da família.
A pressão para casar e construir uma família continua forte até os dias de hoje. Mulheres solteiras sempre são questionadas sobre quando vão casar, se querem ou não ter filhos, como se estivessem atrasadas para cumprir um prazo social e que, por vezes, vem mascarado com a história do “relógio biológico”. Essa cobrança ignora os sonhos individuais, as carreiras, outros projetos de vida dessa mulher. O casamento não deveria ser algo imposto, mas sim uma escolha baseada no amor e no respeito. No entanto, para muitas mulheres, essa escolha nem chegou a ser cogitada.
É essencial questionarmos cada vez mais essa cultura que ensina as mulheres a aceitarem menos do que merecem e a se contentarem com relacionamentos abusivos para evitar que cheguem ao fim da vida sozinhas ou o julgamento social. A felicidade não depende de estado civil, uma mulher que escolhe ficar sozinha não é uma mulher incompleta ou infeliz e, principalmente, que sair de um relacionamento tóxico e violento não é fracasso, mas um ato de coragem e de luta pela sua felicidade e bem-estar físico e mental.
A história de Dolores Claiborne é uma ficção, mas que ilustra a realidade de muitas de mulheres vítimas da violência doméstica. Enquanto a sociedade continuar tratando o casamento como um destino obrigatório e inevitável, muitas continuarão presas em relacionamentos cercados de violência, dor e submissão. É hora de ressignificar o que significa ser mulher e entender que liberdade e felicidade devem ser direitos respeitados, não concessões.
REFERÊNCIAS:
KING, Stephen. Dolores Claiborne. Tradução de Cássia Zanon. 2. ed. Rio de Janeiro: Suma, 2019.
IMAGEM: Coisas de Mineira
Commentaires