Você pensou que eu escreveria sobre mais um tema polêmico, bombástico... Identitário, não é? Na verdade, eu até pensei em um ensaio sobre Barbara Carine e sua resistência em reconhecer os limites de suas piruetas hermenêuticas, ou talvez qualquer uma das milhares de polêmicas distribuídas pelos quatro cantos do universo digital. Como você sabe, o restaurante dos algoritmos é um buffet livre com infinitas opções, não importa o tamanho ou o tipo da fome... ela vai ser satisfeita!!!! Mas depois de escrever algumas linhas, acompanhadas de um café não muito bom, um pensamento invadiu minha cabeça: “Vale mesmo a pena isso aqui”? Quando o assunto são pautas identitárias, não faz muita diferença o dito ou o feito, nem mesmo o ritmo e a solidez dos argumentos em jogo. “Os fatos não penetram no mundo em que vivem nossas crenças, não as fizeram nascer, não as destroem” (PROUST, 1913, p. 76). Se isso for verdade, se algum principio de autopreservação toma conta do meu corpo de um jeito darwiniano, críticas a mim, à minha identidade, ou seja, ao princípio básico que organiza a minha própria existência, jamais são bem vindas nas ruas pragmáticas da vida.
No país das maravilhas, sentado perto da mesa de chá com o chapeleiro maluco, uma linguagem bem encadeada, premissas consistentes e justificativas sólidas transformam opiniões, certo? Mas lembre de um detalhe importante... Eu não sou um liberal, muito menos um chapeleiro, por isso desconfio de qualquer debate, ou melhor, da sua eficácia. Embora me divirta encadeando significantes, e até pague minhas contas com cada um deles, evito ilusões quando o assunto é linguagem. É um engano pensar que homo sapiens colocam a si mesmos em risco, expondo seus corpos de propósito a argumentos ácidos, principalmente quando valores despencam na mesa metafórica das identidades. Em outras palavras, se os alicerces da minha existência são ameaçados, é natural que eu proteja a mim mesmo, além de usar qualquer recurso simbólico disponível no meu bolso, da religião até a novela das 9, passando por repertórios acadêmicos e delírios metafísicos. Se “estruturas” e “sistemas” perdem o status de conceitos provisórios em circuitos de pesquisa e se transformam em casas existenciais protegendo corpos dilacerados, assim como identidades perdidas em busca de autoafirmação, o destino é inevitável... uma espiral de sons inúteis, imagens sonoras sem destino, círculos de ódio alimentando a si mesmos.
De qualquer forma, peço desculpas a você, meu leitor, mas eu não quero falar de humanos aqui. Sem dúvida, sua espécie é muito criativa, com tantos caminhos possíveis no percurso de sua jornada existencial, mas cansei dela por hoje, pelo menos por enquanto. O protagonista desse ensaio é outro, um mamífero muito mais interessante do que eu e você: a capivara. Dentes engraçados, uma mistura de porquinho da índia e castor, um andar curioso, cheio de elegância e coragem... essa é a capivara. Você já viu uma por aí, talvez em um vídeo aleatório no Youtube ou na TV? Provavelmente sim, certo? Afinal, ela é uma celebridade no universo dos mamíferos, respeitada por todas as outras espécies, de abelhas até crocodilos. Mas você já viu uma capivara ponderando sobre os limites estruturais de uma estética capivoriana, numa busca sutil por inconsciências ocultas nos bastidores do mundo capivorístico? Capivarianamente falando, isso não faz sentido, não é? Você já viu uma capivara defender valores religiosos tradicionais ou uma flexibilidade linguística com seus pronomes neutros? Na vida secreta das capivaras, ao contrário, o mundo é o que é... simples, óbvio e colorido, como um banho de sol depois de um delicioso banquete de capim.
Em vez de um campo identitário de debates infinitos, de indivíduos desesperados por autoafirmação, em um ciclo interpretativo sem fim, a capivara repousa tranquila, confortável, enquanto seus amigos pássaros bebem água na beira do rio. “Quem ela é?”, pergunta você, curioso. Esse é o ponto... nossa amiga capivara não é nada, não é uma identidade, provavelmente desconhece seu próprio reflexo, ou seja, ela não é, ela vive. Lembram quando a vida era assim, mais simples? Pois é... nem eu. Desde que me conheço por gente o mundo permanece em uma constante esteira de análises, questionamentos, críticas e debates... um mundo como um objeto de suspeitas, incluindo seus mínimos detalhes, suas mais profundas causas. Sente o cheiro? É o fedor transbordando das instituições, das pessoas, das coisas e das entranhas das próprias circunstâncias. Eu até consigo sentir você do outro lado dessa tela, com todo esse perfume institucional em seu corpo, disfarçando seu fedor. Lembra quando eu “[...] parecia cheirar até mesmo através de sua pele, dentro dele. Os sentimentos mais delicados, os pensamentos mais sujos ficavam desnudos diante [do meu] narizinho ansioso [...]” (SUSKIND, 1985, p. 16).
Até mesmo um sorriso, um aceno de mão, um gesto involuntário do corpo, deixam de ser simples movimentos e ganham tons de cinza, de uma intensa suspeita. Filtros estruturais, sistêmicos, rizomáticos, em rede, fazem parte de uma rotina hiper-reflexiva, como diria Giddens, em um dos seus clássicos da Teoria Social. Não importa se o sujeito suspeitoso tem um contorno conservador ou progressista... não interessa mais!!! A hermenêutica da suspeita aparece em todos os lugares, em todas as postagens... em todas as palavras. “Amor”, “verdade”, “bem”, “belo”, nem mesmo essas imagens sonoras resistiram ao impacto das ondas hermenêuticas. Somos agora “cínicos”, todos nós... não acreditamos no aroma das flores, apenas no fedor das críticas. Suspeitar não é um ato, é uma instituição, a maior delas em nossa democracia liberal. Mas não se preocupe, porque nossa companheira capivara permanece a salvo em seu banho de sol. Felizmente, ela não toma Rivotril, não passa dias em psicólogos, nem horas em comentários indignados no Twitter. O que ela faz? Simples, ela vive. Parece tão difícil entender esse verbo em circuitos contemporâneos... V-I-V-E-R. Repita três vezes (viver, viver, viver)... não soa estranho nos seus ouvidos essa combinação aleatória de sons (V-I-V-E-R)?
Em um mundo identitário como o nosso, tudo, todos e até todes são uma constante tarefa, uma looooonnnga travessia autoafirmativa. Meu próprio EU é uma construção sem fim, um quadro aberto a pinceladas incertas, assim como todo detalhe é um pretexto que força quem eu sou e, principalmente, quem eu recuso ser. A roupa vestida, a postagem feita, a viagem experimentada, o político eleito, o filme assistido... tudo parece um circuito que comunica uma mensagem muito clara: “olá, Narciso, que bom te ver de novo”. Esse esforço constante de autodefinição esconde, talvez, uma incerteza constitutiva, uma intensidade visceral. Se eu preciso afirmar o tempo todo quem sou e o que não sou, em uma aventura hermenêutica sem fim, um preço é pago nessa jornada identitária, não é mesmo? Felizmente, dessa dialética negativa nossa capivara permanece a salvo, porque ela não é, ela vive.
Eu passei minha vida inteira cercado de livros, artigos, debates... O mundo sempre foi um objeto de investigação diante dos meus olhos, até algo simples como uma festa com amigos ou um simples copo espumante de Itaipava. Cada detalhe, cada sentimento, cada suspiro poderia ser dissecado em busca de inconsciências. Por mais ingênuo e insuspeito que fossem, nenhum centímetro de realidade sobrevivia aos ataques da minha hermenêutica da suspeita. Quando vejo a capivara majestosa em seu banho de sol matinal, eu não vou mentir... tenho uma inveja profunda daquela serenidade, daquela aura zen e impossível de ser alcançada por meras mãos humanas, como as minhas ou as suas. Ah... que inveja!!! Uma inveja tão grande, um desejo tão profundo de apenas SER, sem que isso se transforme em uma tarefa diária, custosa e suspeita. Qual conselho nossa amiga capivara é capaz de compartilhar, supondo a existência de algum português capivorístico? Não sei...talvez um dia pergunte a alguma capivara por aí e, quem sabe, algum dia ela responda.
Esse mundo de extrema complexidade, de uma hermenêutica da suspeita descontrolada, contamina nossas vidas. Não é irônico?... nossa ferramenta reflexiva mais importante, a que nos liberta de opressões e esclarece obstáculos, é também a causa de tanto sofrimento. Seria o nosso remédio também o nosso veneno? Se a resposta é sim, o que deve ser feito? Sem dúvida, precisamos do remédio, não podemos desistir da racionalidade, apesar do seu efeito colateral. “O que fazer, então?”, pergunta o humano desesperado. “Eu não sei, problema seu. Agora, saia da frente do sol, eu preciso relaxar”, responde a capivara metafórica.
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