Em 2011 tive oportunidade de assistir à peça teatral Namíbia, não! no Teatro Castro Alves, escrita por Aldri Anunciação. Lázaro Ramos e Aldri defenderam seus personagens brilhantemente. Foi uma experiência enriquecedora, inclusive porque fui convidada por meu amigo e padrinho, que também é ator, formado pela Escola de Teatro da UFBA. Lembro que saímos do TCA empolgados. A beleza da arte deixa a gente um tanto “embriagados” e sem dúvida aproveitamos aquele momento único. Eis que, 11 anos depois, na semana de estreia, eu e meu companheiro fomos assistir, Medida Provisória, um filme com direção de Lázaro Ramos baseado nesta mesma peça, e livro, de Aldri, Namíbia, Não!
Assisti também o programa Roda Viva, no qual o entrevistado era Lázaro comentando sobre a construção coletiva desse filme. São muitas emoções! Fiquei contente com a trajetória desse menino baiano. Quanto talento, inteligência, carisma, humildade! No Circuito Sala de Arte, sentimos um misto de emoções! No fim da sessão de cinema, a platéia aplaudiu o filme! Importante ressaltar que haviam muitas pessoas pretas na sala, vi rostos que denotavam contentamento por se sentirem representados. O elenco enriqueceu ainda mais a narrativa. Dentre os atores, Seu Jorge, Taís Araújo, Aldri Anunciação, Alfred Enoch, Emicida, Renata Sorrah, Adriana Esteves. Fiquei emocionada diversas vezes e faço um pedido aos leitores(as), garantam a presença de vocês nas salas de cinema. Esse é um filme mais que necessário, é urgente! Lotem as salas, valorizem o cinema brasileiro, se não estou equivocada é a última semana de exibição do filme. No Circuito Sala de Arte de Salvador, sentimos um misto de emoções!
Medida Provisória retrata um futuro distópico no Brasil dominado por um autoritarismo que “beira a sutileza”. Explico melhor. O governo brasileiro cria uma medida provisória que, com a justificativa de “reparação social” do seu passado escravocrata, envia todas as pessoas negras do Brasil para África. Institui uma norma sem consultar e dialogar com a população preta do país, sob a premissa tacanha de: “Vocês querem reparação, toma isso!”, uma vez que todos os pretos e pretas poderiam conquistar uma grande vitória indenizatória a uma senhora que sofreu o racismo na pele. Por trás desse discurso é nítido o processo de higienização social e a perversão do racismo estrutural. Essa medida autoritária gera um caos no Brasil. Perseguições e barbárie contra o povo preto.
O longa metragem é uma mistura de drama, comédia, ação. Durante todo filme a sensação é de uma “emoção suspensa’, um susto que provoca incômodo e “uma espécie de nó na garganta”. Como assim enviar todas as mulheres, homens e crianças pretas do Brasil de volta a África? Que África é essa, já que o continente africano é extenso, com mais de 50 países, cultura e dialetos diferentes? Como conceber um Brasil sem pessoas pretas? Este aspecto distópico futurista do filme infelizmente também representa o Brasil do presente.
Ora vejam, mesmo que algumas pessoas não reconheçam a história, esse país é constituído pelo povo preto. Em 1888 o Brasil aboliu legalmente a escravidão com a Lei Áurea. O que houve pós abolição? Essa é uma pergunta central para entender, por exemplo, o processo de cotas raciais. Será possível que o complexo de “vira-lata” da branquitude elitista, pautado pelo comportamento eurocêntrico e colonizador prevalecerá? Até quando? Os países europeus colonizadores se apropriam, criam símbolos de uma nação soberana e forte. Por que será que nesse aspecto não “imitamos” os colonizadores?
O Brasil tem um passado enorme pela frente. Imaginem que em pleno século XXI algumas pessoas insistem em desqualificar a fala de quem sofre todo santo dia racismo, de quem é parado e humilhado em lojas de shoppings, de quem é brutalmente agredido em redes de supermercado, de quem é vigiado, perseguido, punido por ter a cor da pele preta. É necessária uma escuta ativa daqueles que sentem a discriminação na pele, fundamental ouvir as pessoas pretas desse país. Nesse sentido o filme Medida Provisória, traz à tona esse assunto de maneira clara, simples e didática. Lazaro Ramos faz uma colocação bastante pertinente ao assunto no livro escrito por ele intitulado Na Minha Pele: “é mais fácil escolher um argumento- como defender que no Brasil o racismo é brando- e insistir nele, dizendo que tudo é mimimi ou mania de perseguição. Sem assumir a complexidade, nada muda de lugar”.
O filme também traz o conceito de afrobunkers, coletivos de pessoas pretas que vivem e endossam uma visão de mundo fundamentada na afirmação dessa cultura tão rica e diversa. A trilha sonora é simplesmente maravilhosa, Elza Soares, Baco Exu do Blues, Cartola. Referências como Milton Santos, Conceição Evaristo, Abdias Nascimento brilham nas telas do cinema! Cada personagem traz em si uma representatividade marcante. O personagem defendido por Seu Jorge, por exemplo, André, é um sujeito divertido, faz piadas irônicas e ri de si mesmo como forma de suportar a dor de sofrer o racismo diário, e todas suas consequências. De outro lado, temos o personagem, Antônio, um advogado que luta pelas causas justas de reparação social, conduzido por Alfred Enoch. O papel da Renata Sorrah, uma síndica de um prédio, senhora branca que mora no Brasil, mas se sente uma europeia.
A médica Capitu representada pela atriz Taís Araújo, que ao longo de sua trajetória entende que o único caminho é lutar por um país mais justo e igualitário. Pablo Sanábio que atua como Santiago, um rapaz branco que desiste de trabalhar em um ambiente que hostiliza pessoas pretas, pede demissão e tem um relacionamento interracial, Adriana Esteves representando uma inspetora do governo, racista, autoritária e subserviente. O filme condensa de forma brilhante uma realidade diária e contemporânea, colocada sob o prisma de um absurdo, um nosense generalizado, talvez na tentativa de fazermos acordar da banalização e condescendência que temos diante de uma causa tão urgente.
Mas, afinal o que caracteriza o racismo? Nas palavras do professor e diretor do Instituto Luiz Gama Silvio Almeida “o racismo mais do que ser produzido, produz os sujeitos e se configura como um fenômeno que está atrelado a outras condições, como por exemplo, condições políticas, econômicas e as condições da própria constituição das subjetividades, ou seja, o racismo é um processo”. Portanto, o racismo se torna estrutural no que tange a conjuntura social brasileira. Como não reproduzir o racismo? desenvolver visões críticas sobre ocupação dos espaços nas estruturas de poder, nas profissões, na mídia, nos filmes, nas novelas são caminhos. Quantos médicos pretos você conhece? Nos espaços que você frequenta, a mais pessoas brancas ou pretas? Se essas perguntas geram incômodo, você conseguirá compreender a “ponta do iceberg”. Inclusive, Silvio Almeida reitera que a desigualdade econômica é estruturada em bases raciais. Dados estatísticos derivados de fontes do IBGE, comprovam que pessoas pretas possuem salários mais baixos que pessoas brancas.
Façamos de forma didática uma análise de discurso: Quando uma pessoa diz: não sou racista, até tenho amigos negros. O que significa esse “até’? Uma possibilidade talvez, seja a de que esta pessoa, sente-se tão superior que faria uma concessão para ter alguma relação com pessoas pretas. Essa é a distorção do discurso preconceituoso que não considera essa fala agressiva, pelo contrário, algumas pessoas colocam como “natural”. Podemos não ser racistas porque discordamos com a forma que o estado, a mídia, as empresas tratam pessoas pretas, mas ser antirracista é questionar toda estrutura que faz de nós sujeitos de um sistema que reproduz o próprio racismo, inclusive o que a linguagem cotidiana veicula de discurso racista e preconceituoso.
Por que será que algumas pessoas se comovem com mortes de crianças brancas e tornam invisíveis os assassinatos de crianças pretas nas comunidades? Se são crianças, não deveríamos nos preocupar e proteger com o mesmo afinco? As medidas para combater o racismo ao longo do tempo deveriam estar voltadas, de forma contundente e urgente, para políticas públicas de reparação social, inclusão de pessoas pretas nos espaços de poder, incentivar o respeito as religiões de matriz africana, construir espaços nos meios de comunicação, nas diversas mídias, promovendo debates sobre o assunto, com profundidade e sensibilidade, dando voz aos que sentem o racismo na pele. Todos nós somos responsáveis por combater o racismo estrutural, essa não deve ser uma questão apenas de pessoas pretas. Se almejamos a construção de um país mais digno, e justo não podemos escapar dessa urgência! Nós, brasileiros(as), necessitamos desse olhar mais profundo e enraizado, desse reconhecimento histórico dos povos pretos e indígenas, resgatar nossa autoestima enquanto povo, valorizar o que é nosso, se apropriar dessa imensa diversidade cultural e racial.
Entre as reflexões e desdobramentos possíveis de um assunto tão complexo, finalizo esse texto com um trecho da canção Oração pela Libertação da África do Sul, do grande Gilberto Gil, que recentemente entrou com louvor para Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra:
“Senhor, irmão de Tupã, fazei
Com que o chicote seja por fim pendurado
Revogai da intolerância a lei
Devolvei o chão a quem no chão foi criado”
Link da imagem:
Bibliografia:
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2021.
Na minha pele/Lázaro Ramos. - 1° ed.- Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.
Comments