Os fatores econômicos, políticos e culturais de uma sociedade influenciam de forma direta e indireta o comportamento dos indivíduos, imersos em juízos e preconceitos morais perpetrados ao longo de milênios. Nesse sentido o enfrentamento necessário para desconstruir preconceitos de diversas ordens perpassa por um longo e árduo caminho. O que desperta minha atenção nesses discursos é a dificuldade que vejo nas pessoas em compreender a alteridade e a resistência em escutar o outro.
O diálogo pode ser um caminho na desconstrução de preconceitos, entretanto percebemos que a comunicação entre as pessoas enfrenta falhas na própria linguagem. Para ultrapassarmos essas barreiras é fundamental refletirmos sobre a alteridade latente em cada um de nós. Quando reconhecemos que existem modos variados de conceber o mundo passamos a perceber com mais clareza a importância da diversidade.
Percebo que a atitude de escutar não se relaciona apenas ao sentido da audição, mas, principalmente, a capacidade de “abrir mão” das certezas absolutas baseadas em uma visão egocêntrica. Queremos externalizar nossas opiniões para exercer poder ou para exercitar o diálogo? Compartilhar nossos conhecimentos e vivências auxilia o exercício da escuta, contudo o uso da sensibilidade traz uma compreensão da linguagem além da superfície. Essa atitude cria um vínculo de empatia. Sentir empatia pelo outro pressupõe o acolhimento da escuta e o respeito às diferenças.
Podemos refletir sobre como uma fala preconceituosa pode ferir o outro em dimensões diferentes. Por diversas vezes lendo debates sobre machismo, racismo e misoginia observava que sempre havia pessoas que iniciavam um discurso negando o que o outro sente ou pensa. Essa atitude é também uma forma de “calar” a diferença demonstrando ausência de empatia, além de reproduzir um comportamento colonizador, em que o outro não possui direito de expressar e exercer seu lugar de fala. Vale ressaltar que liberdade de expressão não implica em uma comunicação violenta. Qual a nossa responsabilidade em não coadunar com essa conjuntura? Como podemos pensar o outro além de uma ameaça?
O sentimento de superioridade em relação ao outro define um comportamento etnocêntrico. “Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos, os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência”. [1] Esse sentimento de superioridade em relação ao outro pode ser aprendido nas relações sociais e denota um medo irracional do desconhecido.
Em uma passagem do livro Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago revela a condição conflitante do ser humano na relação com outro, visto como ameaça e estranheza: “Comportam-se como se temessem dar-se a conhecer um ao outro. Via-os crispados, tensos, de pescoço estendido como se farejassem algo, mas, curiosamente, as expressões, eram semelhantes, um misto de ameaça e de medo, porém o medo de um não era o mesmo que o medo do outro, como também não o eram as ameaças. Que haverá entre eles”.[2]
A diversidade desconstrói uma visão de mundo homogênea e dominante porque diante das diferenças as pessoas são confrontadas em relação aos próprios valores. Essa situação pode promover mudanças, afetar uma realidade e ao mesmo tempo gerar conflitos. Na sociedade contemporânea, padronizar comportamentos significa controle e manutenção do poder de grupos privilegiados. Se considerarmos mais uma vez que humanos são contraditórios e ampliarmos nossa visão além do maniqueísmo, perceberemos que um dos caminhos para quebrar esses paradigmas está relacionado ao ato de relativizar nossa visão diante das peculiaridades de cada um.
Considerar o outro sempre como inimigo torna o mundo caótico e absurdo. A afirmação de si não precisa passar pela negação do outro. Em nome do “bem” de um determinado grupo foram cometidas muitas tragédias e atrocidades contra a própria humanidade. Homogeneizar o mundo em torno de uma única verdade absoluta é no mínimo bastante temerário.
É importante ressaltar que rótulos e julgamentos superficiais são baseados na repetição de discursos preconceituosos oriundos da própria sociedade. Geralmente são crenças limitantes que retroalimentam o senso comum no qual o outro é sempre visto como ameaça.
Esse texto não pretende encerrar a complexidade do assunto, afinal a humanidade atravessa esse dilema de conflito com o diferente por tempos imemoriais. Pensar o outro além dos muros que nos cercam exige abertura para o diálogo, escuta ativa e, sobretudo, a sensibilidade perceptiva de que a diferença é enriquecedora, proporciona novas formas de pensar a existência humana e viabiliza a construção de uma sociedade menos desigual, mais equânime.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
[1] EVERARDO, P. Guimarães Rocha. O que é etnocentrismo: 11ª Ed: São Paulo: Brasiliense, p. 7, 1994.
[2] SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a cegueira: 2ª Ed: São Paulo: Companhia das Letras, p. 49 2017.
Link da imagem: https://www.youtube.com/watch?v=BR1heI34NoQ
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