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A FALÁCIA DO EMPREENDEDORISMO CIENTÍFICO





*Por Jéssica Alves


Vende-se um orientador: os riscos da precarização do trabalho científico na internet


Começou com um perfil ou outro no Instagram, mas agora sinto que estão pipocando perfis de cientistas que, por não encontrarem sustento no mercado formal, lançam-se nas redes sociais vendendo todos os serviços possíveis – desde revisões e formatações de TCC’s até mesmo serviços de “orientação virtual” que prometem aumentar significativamente sua produtividade científica. Existem também os mentores de cientistas que ajudam outros cientistas a venderem produtos na internet, ou mesmo virarem mentores. O problema é que isso tudo é uma grande roubada para a atuação do cientista no Brasil.


A uberização do trabalho chegou para as mais diversas classes trabalhadoras do nosso país, e infelizmente também está atingindo a Ciência. Com a chegada dos governos de esquerda a partir dos anos 2000, o Brasil aumentou significativamente seu investimento em universidades, bolsas de pesquisas e editais de financiamento para a Ciência. Como consequência, tivemos grandes avanços na produção científica nacional, com a formação de mestres e doutores em todas as regiões do país. Entretanto, o plano foi drasticamente interrompido. Nem sequer deu tempo de concretizar uma política de desenvolvimento contínua e sólida na Ciência e Tecnologia brasileira. Com a mudança de gestão federal, os recursos minguaram, vários cientistas saíram do país. Alguns dos que ficaram, ou mudaram de profissão, ou resistiram com dificuldade ou resolveram empreender na internet.


Acompanhando periódicos de notícias científicas internacionais, percebo que a crise dos profissionais da Ciência não atinge somente o Brasil. Mês passado, o Nature Briefings trouxe uma coluna sobre os Doutores que resolveram migrar para as salas de aulas. Diversos pós-doutorandos como eu, no mundo inteiro, se sentem altamente infelizes por dedicarem boa parte da sua vida para a pesquisa e terem que lidar com um mercado excludente, competitivo e incerto.

Mas, há uma lógica por trás da nossa angústia – no mundo capitalista, a Ciência e a Tecnologia não podem estar acessíveis a todos. O desenvolvimento científico é uma das ferramentas de lucro e hegemonia, portanto, dificulta-se de todas as maneiras o acesso ao conhecimento. Cientistas do Sul Global são vistos como pouco capazes em relação aos demais cientistas, por exemplo. Portanto, competir com essa lógica é quebrar correntes muito mais fortes que o mérito pessoal. Dessa forma, caro leitor, não é difícil compreender que as carreiras científicas são umas das mais adoecedoras que existem, e tende a ficar pior se você é mulher, negra(o), indígena ou LGBTQIAP+.


Sim, mas onde entra o cientista empreendedor da internet? Bem, digamos que esses são a cereja do bolo. Os empreendedores da internet geralmente prestam serviços que a universidade pública ou a faculdade particular deveriam fazer, mas não fazem. Nas Universidades Públicas os docentes entram com 3 funções diferentes: a pesquisa, o ensino e a extensão. Sabe aquele lance de acúmulo de função? Em profissões regulamentadas, o acúmulo de função é crime e a empresa é penalizada. Porém os cientistas não apresentam uma carreira regulamentada no Brasil, então, meio que o acúmulo de função não é mais que a sua obrigação se você escolhe ser um docente pesquisador.


Como resultado, temos professores que ensinam, pesquisam, orientam dezenas de estudantes e precisam fazer trabalhos de extensão, porém a conta não fecha. Algum desses setores saem prejudicados, muitas vezes são os orientandos. Em geral, um docente universitário acumula funções de 3 profissionais diferentes, fora as atividades administrativas da instituição. Ora, se um faz o trabalho de 3, a cada professor concursado numa universidade, 2 profissionais necessários acabam ficando de fora. Quando um recém doutor resolve cobrar para ser uma espécie de “orientador” ou “mentor” pago por fora, ele na verdade está precarizando o seu trabalho. O correto seria que este profissional estivesse na universidade, prestando esse serviço de forma gratuita para os estudantes, gozando de seus direitos trabalhistas. Dessa forma, o estudante que pode pagar pela mentoria, acaba conseguindo mais êxito que os estudantes que não possuem as mesmas condições.


Nas faculdades particulares o arrocho é pior. Em geral, é lançada uma disciplina de TCC com 40 a 50 estudantes por turma com um professor responsável por ler e corrigir todos os trabalhos produzidos. Esse professor recebe pela hora aula em sala de aula, valores muitas vezes baixos. Porém, boa parte do seu trabalho é feito em casa e, consequentemente, não é remunerado. Este professor provavelmente não se sustenta trabalhando para apenas uma instituição, logo, para completar a renda ele acumula contratos em outras instituições particulares. Mais uma vez: a conta não fecha. Os estudantes então buscam ajuda dos orientadores virtuais que oferecem seus serviços acadêmicos. O estudante paga duas vezes, o professor CLT é superexplorado e o cientista empreendedor, além de não ter seu nome como orientador ou co-orientador da pesquisa, recebe menos ainda e parte do que ganha vai para as grandes plataformas virtuais em forma de anúncio patrocinado.


Tá sobrando cientista no Brasil, é isso? Não. Na verdade, a proporção de doutores no Brasil ainda é muito baixa, considerando outros países de economias similares. A questão é que as oportunidades não são geradas e a carreira científica no Brasil sofre um tremendo arrocho. Isso não é neutralizado apenas abrindo mais Universidades e Institutos Federais, empresas estatais e de economia mista também apresentam a função de promover o desenvolvimento científico e tecnológico do país, e claro, promovendo empregos reais a essa mão de obra que está à toa no país. O Brasil precisa de Cientistas, no meio ambiente, nos transportes, nos serviços de internet, na produção de insumos e medicamentos, na área da pesquisa social, mas falta um plano político para gerar emprego de verdade para esses profissionais. Esse plano político não vai cair do céu sem a mobilização da classe, muito menos vai ser sanado se os cientistas acharem que podem simplesmente empreender na internet, e que está tudo bem.


Não faz o menor sentido a gente ficar formando doutores e doutoras para venderem cursos de mentorias científicas na internet, enriquecendo os supremacistas da comunicação. Precisamos de oportunidades reais de emprego, renda e transformação da sociedade. Mas aí temos um porém, o cientista precisa se reconhecer como classe trabalhadora, entender que não é vergonha nenhuma lutar por direitos coletivos. Quando os degraus dos egos forem superados, quem sabe nossos cientistas vão perceber que, o tempo que passaram perseguindo estudantes, desmerecendo o trabalho das pesquisadoras e assediando mulheres na Ciência (vide os últimos escândalos que viraram notícia), deveriam mesmo era estar lutando contra a uberização do trabalho científico.

 

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*Jéssica Alves. Colaboradora da Soteroprosa. Doutora em Diversidade Animal - UFBA. Professora do Estado da Bahia



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carlosobsbahia
carlosobsbahia
21 dic 2023

No seu último parágrafo,Jessika,que paira uma discussão:cientistas se reconhecem como classe trabalhadora? Muitos não lutam por regulamentação de suas atividades,aí fica difícil uma amplitude mais técnica de suas funções estarem no escopo da lei.

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