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Foto do escritorMurilo Nonato

A ESCREVIVÊNCIA




A escrevivência, termo cunhado por Conceição Evaristo, representa uma escrita baseada nas experiências de vida das pessoas subalternas, com o objetivo de dar voz e constituir a memória desses grupos. Na última década, essa literatura cresceu significativamente, com nomes como a própria Conceição, Itamar Vieira Júnior e Jefferson Tenório figurando entre os mais vendidos. Esses textos inspiraram outras produções, como peças de teatro e filmes.


No entanto, ao refletir sobre a escrevivência, é importante considerar suas fragilidades. O sucesso de textos baseados em experiências subalternas e seus sofrimentos transformou-se em commodities lucrativas para o sistema neoliberal, tornando-os inacessíveis para a população subalterna de baixo poder aquisitivo.


Livros, por regra, são caros. Durante meu mestrado, com uma bolsa de 1500 reais, era quase impossível economizar o suficiente para comprar livros físicos, devido a outras necessidades mais urgentes. Baixar PDFs era uma opção, mas após um longo dia de leitura digital para a dissertação, a última coisa que eu queria era continuar lendo em uma tela.


Além disso, é necessário considerar o acesso à internet e aos dispositivos como celulares, tablets e computadores no Brasil. No projeto de literatura do qual faço parte, a maioria dos alunos possui apenas celulares, muitos com telas rachadas, e alguns só têm acesso ao celular de um familiar. Mesmo PDFs não são uma solução viável para todos.


Quando fomos aprovados em um edital da UFBA, recebemos verba para comprar livros para o projeto. Orçamos, por exemplo, "O Avesso da Pele", que logo depois foi censurado em escolas, gerando uma controvérsia em torno do livro. O resultado? Quando fomos comprá-lo, o preço estava em média 20 reais mais caro por unidade, impedindo-nos de adquirir os quatro títulos planejados; pudemos comprar apenas dois. Não seria essa uma forma de censura? Aumentar absurdamente o preço do livro para limitar ainda mais o acesso dos pobres a esse bem, mesmo através de um projeto social?


O exemplo acima é apenas um dos muitos casos que mostram que, apesar de os livros abordarem temas sensíveis sobre as violências sofridas pelos subalternos, a inacessibilidade dos livros de seu interesse torna-se, ela própria, uma forma de violência. As suas histórias são contadas, mas para quem? Constata-se, mais uma vez, que a escrevivência pode ter se tornado uma commodity nas mãos do sistema capitalista.


E fica a pergunta: Quem lê e pode se conscientizar sobre os sofrimentos dos subalternos? A classe média branca? Os subalternos classe média?


Para além desses questionamentos, outros pontos me parecem relevantes. Se esses livros são hoje uma commodity, um produto, eles não cumprem uma função social no sistema neoliberal, mas são apenas oportunidades de lucro – um gênero lucrativo. Assim como outras modas literárias podem passar, um dia o desejo do leitor por consumir livros como "Olhos d’Água", "O Avesso da Pele" e "Torto Arado" pode se saturar.


Se o projeto de Conceição era inscrever a história dos subalternos na memória nacional, os constituir como parte do imaginário da construção do povo desse país, esse propósito resistirá ao seu desgaste enquanto produto? E quando esse produto saturar, o que será desses escritores e de suas histórias subalternas? Terão de se adaptar às demandas do mercado? Qual será a potência questionadora desse movimento com o mercado cansar dele?


São mais perguntas e inquietações que respostas que trago neste texto. Por fim, deixo aqui a fala de um querido amigo, dono de uma editora e livraria:

"Meu sonho é alguém boicotar um dos meus livros em um grupo de fundamentalistas. As vendas iriam disparar!"


Tudo se transforma em produto dentro desse sistema esmagador. Será que existe alguma escapatória? Espero que sim.

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