A ERA DA BANALIZAÇÃO E VULGARIZAÇÃO DA POLÍTICA (ou pela aceitação da metafísica natural do poder)
- Antonio Danilo Pereira Santana
- 30 de mar. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 8 de mai. de 2024

* Por Antonio Danilo Santana
“Ninguém, em tempo algum, chegou a ver um Estado. Nem a olho nu nem ao microscópio, nem em fotografia nem de avião. Não é uma coisa, como um território ou uma porção de oceano. Mas uma certa relação entre os homens pela qual o direito de comandar é independente da pessoa do comandante. Uma coletividade é regida por um Estado quando o vínculo de submissão de homem a homem é substituído por uma subordinação de princípio” (DEBRAY, 1994, p. 61).
A ERA DA BANALIZAÇÃO E VULGARIZAÇÃO DA POLÍTICA (ou pela aceitação da metafísica natural do poder)
Antonio Danilo Santana
Com essas palavras, extraídas de sua obra O Estado Sedutor: as revoluções midiológicas do poder,Régis Debray, filósofo marxista e ex-guerrilheiro francês caracterizou o Estado, em especial àqueles nascidos sob a forma republicana, como uma estrutura relacional principiológica. Ao longo do livro, o teórico aponta para o fato de que essa característica de despersonificação imanente ao ente estatal paradoxalmente suscita uma reiterada operação simbólico-imagética de subjetivação de sua forma por parte dos governos que preenchem temporalmente essa estrutura.
Com a recente ascensão aos postos de poder dos populistas da nova-extrema direita, de um lado, e, de outro, dos porta-vozes do identitarismo, no campo da esquerda, as instituições têm experimentado uma maior intensificação desse fenômeno que é observado por Debray já lá no distante ano de 1993, quando publicou na França a obra em comento. E o Brasil tem sido um cenário em que esse novo patamar da busca por uma espécie de construção da carnalidade do poder tem se destacado. Na esfera federal, temos um troglodita na presidência, um bronco que não perde a chance de falar ao público, de preferência via redes sociais ou de cima de uma motocicleta, como se estivesse no boteco da esquina, com total desprezo ao decoro e à seriedade reclamada pelo cargo. A exemplo de líderes direitistas de outros países, em especial do ex-presidente estadunidense Donald Trump, instituições, minorias sociais e outros políticos são constantemente vítimas de seus ataques indecorosos e baixos, algo em total desalinhamento com a importância de seu posto à frente do Estado brasileiro – é a plena personificação do esgoto político no centro do poder.
O chamado cercadinho, de onde Bolsonaro replica mentiras, solta palavrões e, vez ou outra, agride verbalmente os seus próprios seguidores, nada mais é do que o símbolo máximo, no imaginário nacional, da redução da República a uma espécie de aglomeração numa feira livre, onde reina o senso comum, o descompromisso com a verdade e tiradas de humor barato por toda parte, entre uma pechincha e outra – a pechincha, no caso do cercadinho, se dá sempre na busca por uma nova mentira a ser proferida pelo presidente, uma anedota sempre capaz de gerar algum orgasmo mental nos fanáticos e encarada por cada um deles como a mais absoluta verdade. É o fundo do poço, o nível mais baixo na nossa escala republicana.
Há muitos outros exemplos dessa busca por uma subjetivação rasteira da face do poder por parte de chefes dos executivos das outras esferas, como o ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, afastado do cargo recentemente por corrupção. O ex-comandante do palácio da Guanabara comentou, após eleito, referindo-se às operações policiais contra portadores de fuzis, que a polícia atiraria para matar os criminosos que portassem fuzis, mirando na “cabecinha”, conforme suas próprias palavras. Um candidato a governador eleito pregar o fuzilamento de suspeitos num país em que em sua Constituição não há previsão de pena de morte, exceto em guerra declarada contra Estado estrangeiro, depõe contra a possibilidade de um horizonte ético e humanitário minimamente razoável à esfera pública de um país.
Não bastasse a fala de um populismo policialesco e perigoso, para Witzel ainda se fazia necessário quebrar a distância entre ele, aquele que viria a ocupar em poucos dias o principal cargo na esfera política estadual fluminense, e a parcela dos reacionários que o puseram lá, através do termo “cabecinha”, diminutivo imbuído de um humor um tanto sádico, naquele contexto. Convenhamos que soou mais como a fala daquele típico fanfarrão na fila de alguma lotérica no centro de uma grande cidade, em plena segunda-feira, narrando sordidamente e com muitas ilustrações exageradas estórias de violência que se passaram em seu bairro na última noite de sábado. Noutros termos, a estratégia foi popularmente eficaz, o que não há de surpreender, nesses tempos vulgares em que borbulha uma sociedade com acentuada liquidez ética.
No plano internacional, a violência e negação da política, enquanto campo institucional de mediações e diálogo, simbolizada maximamente no atual contexto pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia, tem trazido à tona o arsenal de bizarrices discursivas do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, que não consegue passar uma hora sem utilizar as redes sociais. Após ter jogado o país que governa a troco de nada nas mãos do implacável líder russo Vladimir Putin e sua máquina de guerra herdade da antiga União Soviética, o mandatário do país invadido tem dividido seu tempo entre aparecer para entrevistas vestido em trajes militares, postar frases de efeito no Twitter e mostrar seu estilo jovial na internet.
A estratégia de Zelensky, ao menos em termos de pretensões pessoais, tem sido um sucesso, já que a opinião pública ocidental já o beatificou. E daí que seu povo esteja morrendo porque ele flertou com a OTAN e com a União Europeia sem garantia alguma de integração da Ucrânia por parte destes organismos, mesmo tendo isso provocado as consequentes desculpas necessárias ao líder russo para uma avassaladora e pesada invasão do seu exército ao país? Para a grande imprensa e para os líderes políticos ocidentais, o mais importante é que um santo já foi construído da noite para o dia, a nova cara da luta do Bem contra o Mal, e uma cara exemplarmente surgida na operação de busca imagética da corporificação do poder que tão bem caracteriza os nossos tempos destituídos de glamour – Zelensky é comediante.
Voltando ao Brasil, no legislativo de todas as esferas federativas também não são poucos os casos dos agentes políticos fazendo de tudo para imprimir uma corporeidade clara e dessacralizante ao fenômeno do poder. Ha alguns dias, em Salvador, a vereadora de esquerda Laina Crisóstomo, que é advogada e feminista, deu um exemplo jocoso, em tempos de hiper-midiatização via redes sociais, da atual dimensão deste processo de busca por solidificar o abstrato do qual é composto o Estado. Em um vídeo, ao que tudo indica gravado no gabinete por ela ocupado na câmara municipal soteropolitana, a parlamentar apareceu dançando uma dança em que rebola a bunda apoiada no chão com as duas mãos ao som de uma música que recentemente consagrou internacionalmente a cantora carioca Anitta, com uma legenda ao lado do vídeo conclamando aos menores de idade aptos a votar que retirem os seus títulos de eleitor para que possam ajudar a derrotar o atual mandatário em sua tentativa de reeleição, no próximo mês de outubro.
A vereadora certamente julga que, ao “meter dança”, expressão comum nas periferias soteropolitanas que se refere simplesmente a dançar, e por ela utilizada estrategicamente para atrair a juventude à luta político-eleitoral, estaria fazendo sua parte na luta para retirar do comando do país o nosso pior presidente desde sua redemocratização. Em sua cabeça, mais do que usar a ferramenta tecnológica para pedir seriamente aos adolescentes que se engajem nessa missão em prol da restituição de um governo simpático à democracia e funcional, o inverso do governo de Bolsonaro, ao “lacrar”, outra expressão que caracteriza bem as afetações identitárias e reivindicada por seus militantes, que pode ser descrita como chamar a atenção de todos através de alguma atitude espalhafatosa, principalmente pelos mais jovens, enfim, a parlamentar certamente entendeu que a pretensa subversão da qual seu ato rítmico traria à tona já seria dotada ela mesma do poder de transformar o estado de coisas em que vivemos – “lacrar” seria a forma de oposição mais nítida contra todo o obscurantismo e retrocesso ético, moral, econômico e civilizacional encarnados no governo federal atual, provavelmente intui a moça. Pronto, não seria mais necessário qualquer planejamento com maior seriedade, cálculo ou racionalidade: a revolta corpórea bastaria para transformarmos a realidade que nos oprime!
Dane-se se a prática lacradora terá ou não eficácia prática! Na era da midiatização total, o importante é carnalizar o Estado para poder quebrar a percepção de qualquer distância entre as estruturas do poder e o povo – esse ente tão abstrato quanto o estatal, e que, ao mesmo tempo, é todo mundo, mesmo não sendo ninguém. Esse processo de busca pela impressão de uma cara e um corpo palpáveis ao grande ente abstrato que tem o monopólio da instituição e/ou legitimação regular de pares de opostos como legal/ilegal, formal/informal, pertencente/não-pertencente, nacional/estrangeiro etc., a instituição das instituições, para Hegel, e por ele batizada como Espírito Absoluto, enfim, tende sempre a desconsiderar que em todas as sociedades ao longo da História, mesmo antes da existência do Estado moderno e mesmo daquele em suas fases germinais, o poder sempre teve uma dimensão sagrada, inclusive quando a razão passou a ser o elemento balizador ou justificador do fenômeno estatal, a partir do Iluminismo.
Ainda que supuséssemos a possibilidade de existência de uma futura sociedade sem classes sociais e, por consequência, sem Estado, como pensada pelo marxismo e pelo anarquismo, ainda assim não teríamos garantia alguma de que em tal estágio do desenvolvimento da humanidade esse caráter sagrado ou metafísico do poder viria a desaparecer, já que, como bem observou Foucault, as relações de poder são inerentes à sociedade, e tais relações em si seriam despidas de qualquer carga moral, pois a relacionalidade do poder não significaria algo bom ou ruim, mas um elemento que, ao atravessar toda a nossa sociabilidade, estrutura arranjos que dinamizam e, no limite, tornam possível essa mesma sociabilidade. Por este motivo, o filósofo pós-estruturalista professava a ideia de que sequer existiria o poder, num sentido ontológico, mas tão somente as relações de poder, isto é, ele só existiria numa dimensão ôntica relacional.
Vivemos uma era vulgaris, e nesses tempos em que o banal e a hiper-imagética reivindicam vorazmente a dessacralização das arenas de poder, cabe a todos os agentes políticos propositivos e éticos, através do bom e velho decoro e da boa e velha seriedade, mostrar que o oba-oba pode dá tanto na jocosidade ineficaz mas bem intencionada das fanfarras identitárias no seio dos aparatos de gestão da sociedade, quanto nas figuras grotescas e que têm por objetivo maior solapar as instituições democráticas para impor à totalidade da sociedade o retrocesso e a manutenção das mais diversas clivagens sociais em nome de uma ordem que seria, segundo tais figuras, divinamente estabelecida, um país e um mundo nos quais palavras como liberdade, pátria e família seriam a tradução semântica absoluta de uma sociabilidade excludente e, no limite, perversa.
O problema daquela dancinha da vereadora de Salvador em pleno espaço de elaboração de leis é que ela é o indício de que o portal da vulgarização do sagrado terreno foi perigosamente escancarado, não havendo nada que garanta que ele possa ser novamente fechado. Deste modo, a questão aqui estaria no campo da eficácia, à medida que, por um lado nós continuaremos a observar uma arena político-estatal que, enquanto encarnação de relações terrenas imbuídas de certa dimensão metafísica, as relações de poder institucionalizadas, continuará a se reproduzir com certa autonomia face à sociedade, por mais que se busque personificá-la com atitudes indecorosas, e, por outro lado, correremos o risco de assistirmos a um aumento progressivo da disfuncionalidade das arenas de elaboração e execução das políticas públicas, nos próximos anos, à proporção que a capacidade técnica tenderia a ser cada vez mais dispensável à constituição dos projetos legislativos e executivos, corroborando a apatia política das massas e esculpindo uma lógica de banalização total da esfera política.
É, parece que ainda não chegamos ao fundo do poço…
Referências
DEBRAY, Régis. O Estado Sedutor: as revoluções midiológicas do poder. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
Da Redação. “Wilson Witzel: ‘A policia vai mirar na cabecinha e… fogo – Governador eleito do estado, ex-juiz federal reafirma plano de ter atiradores prontos para ‘abater’ quem esteja portando fuzil na ruas do Rio”, in Revista Veja, edição eletrônica de 1° de novembro de 2018. Matéria encontrada através do link: https://veja.abril.com.br/politica/wilson-witzel-a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo/. Acessado em 28 de março de 2022.
ALTMAN, Breno. “Quem provocou o conflito? Casa Branca e Europa foram decisivas no fechamento das portas diplomáticas”. In Opera Mundi, edição de 1º de março de 2022. Matéria encontrada no link: https://operamundi.uol.com.br/opiniao/73463/quem-provocou-o-conflito. Acessado em 28 de março de 2022.
Página da vereadora de Salvador Laina Crisóstomo no Instagram acessada em 28 de março de 2022 no link: https://www.instagram.com/p/CbhsUGcDxTy/.
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