Confesso que hesitei em escrever sobre a edição gênica e todos os burburinhos e dilemas éticos que essa tecnologia pode trazer para a humanidade, mas diante do que está acontecendo, acho importante fazer esse movimento. A técnica que revolucionou a modificação do DNA foi descoberta em 2012, e por um tempo, quando conversava sobre a edição gênica ou instigava diálogos sobre o assunto com estudantes em sala de aula, mais parecia uma conversa futurista, dessas que a Ciência é capaz de fomentar. Acontece que em pouquíssimo tempo, cientistas conseguiram aprimorar os estudos e hoje pessoas alcançaram a cura de doenças como hemofilia e anemia falciforme por meio da edição gênica. Além disso, em 2018, um pesquisador chinês anunciou nascimento de duas crianças gêmeas com o DNA modificado para serem resistentes ao HIV. Ele acabou preso, mas o acontecido alertou a comunidade de científica do mundo todo.
Mas como é possível editar genes assim, aniquilando doenças do nosso material genético? Bem, a façanha foi descoberta no estudo de bactérias! Isso mesmo, estudando a forma como bactérias são capazes de se defender de patógenos, cientistas descobriram sequências muito curiosas no material genético dessas pequenas notáveis. A sequência geralmente aparece em uma região do DNA e se repete numa região próxima, o legal é que todas essas sequências são iguais se lidas de frente para trás e de trás para frente. Tais palíndromos no DNA são chamados de CRISPR.
A região entre uma CRISPR e outra pode ser recortada ou colada, ou seja, entre as CRISPRs pode-se adicionar ou remover sequências de DNA de outro organismo. Foi observado que entre as sequências CRISPR de bactérias haviam sequências de material genético viral, como se as bactérias incorporassem ao seu material genético, pedaços de material genético de organismos que as infectaram como um mecanismo de defesa. Mas como as bactérias fazem isso? Bem elas possuem uma série de nucleases- enzimas que cortam material genético- chamadas de Cas.
As nucleases quebram o material genético do patógeno e inserem pedaços desse material no DNA da própria bactéria- e assim, ela desenvolve resposta imune contra o invasor. Ao descobrir isso, começou-se a investigar fórmulas de retirar e adicionar sequências no DNA de pessoas afetadas por alguma enfermidade, além de agilizar o melhoramento de vegetais e frutas amplamente cultivados na agricultura. Hoje a técnica mais precisa utilizada é a CRISPR-Cas 9 que é injetado no organismo através de uma sequência de RNA que pareia em uma região específica do DNA e é capaz de cortá-lo, adicionando uma nova sequência. Existem versões modificadas da nuclease cas 9 que ao invés de cortar DNA, apenas se liga a ele ativando ou desativando sequências de interesse. A metodologia precisa foi desenvolvida por duas cientistas: Emanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, que ganharam o nobel.
As possibilidades são inúmeras, de vegetais resistentes a seca, até mesmo na plantação em áreas muito reduzidas – o que poderia trazer grandes benefícios para a segurança alimentar e conservação de áreas verdes. Para os seres humanos, já é possível alcançar a cura da hemofilia e da anemia falciforme, como mencionado no início deste texto. No entanto, essa tecnologia em mãos erradas pode colocar a humanidade em uma grande encruzilhada – como a das bebês geneticamente modificadas- pelo pesquisador Chinês que gerou duas crianças com genoma modificado por CRISPR para serem resistentes ao HIV.
Vejo alguns problemas com o desenrolar dessas pesquisas. Na agricultura, por exemplo, não sabemos os riscos da expansão de cultivares geneticamente modificados. A modificação gênica, apesar de muito precisa com a tecnologia CRISPR-Cas9, pode gerar algumas consequências indesejadas difíceis de serem detectadas de início. Fatores como a baixa taxa de fertilidade, baixa imunidade a pragas, ou grande dispersão no ambiente prejudicando a flora nativa são riscos que corremos. Além disso, a possibilidade do desenvolvimento de plantas resistentes ao aquecimento global leva a humanidade para uma zona de conforto, adiando ainda mais as mudanças urgentes e necessárias no nosso sistema de produção.
Em seres humanos o mesmo pode acontecer. O nosso DNA é ainda muito pouco conhecido, ao manipular uma sequência no embrião para evitar uma certa doença, pode ser que aquela modificação induzida resulte em alteração na formação de órgãos, perda de proteínas essenciais, e uma série de problemas também difíceis de serem detectados mesmo no nascimento. Por isso, a edição gênica de embriões humanos para serem implantados em úteros não pode ser permitida. Imaginem o risco de gerar crianças doentes, com más formações e condená-las ao sofrimento? Ainda mais para doenças que já temos tratamento eficaz, como é o caso da AIDS, alvo do tal cientista chinês.
Ainda assim, como estão essas gêmeas que ele afirmou terem sido modificadas? Cresceram saudáveis? Para além disso, o quão ético seria para essas gêmeas terem todas as mídias monitorando suas vidas e sendo tratadas como modificadas? Os efeitos psíquicos disso são desastrosos. A prisão do cientista foi justa.
Existe um pacto entre cientistas do mundo todo para que a técnica não seja aplicada em embriões humanos para serem implantados em úteros. Países que permitem o estudo, ordenam que os embriões modificados sejam destruídos antes da diferenciação dos órgãos, e consequentemente, antes de gerar qualquer sensação de sofrimento. Mas o fato é que a técnica é conhecida e relativamente barata em se falando de projetos de Ciência. Neste momento, é totalmente possível que cientistas possam estar cruzando os limites do juramento, sem divulgar para a mídia. Outro perigo é que essa técnica em mãos erradas pode gerar experiências eticamente questionáveis como- mudança de aparência, cor de pele e outros traços em embriões- algo como uma eugenia moderna.
Definitivamente, nós defensores da democracia, lutamos pelo respeito e pela diversidade, e não pela padronização dos corpos. Entretanto, em termos práticos, já estamos penando o bastante para conseguir a cura de doenças via CRISPR. Assim, acredito eu que essas modificações sem alvo em curas de doenças graves, só serão viáveis depois do domínio da técnica e da supressão de todos os possíveis riscos. Afinal, mexer com características humanas não é algo tão simples como uma receita de bolo. Por isso, a expansão do debate e pensar soluções hoje são essenciais para que possamos evitar um futuro trágico.
Um outro problema que vejo surgindo nessa técnica de cura usando a CRISPR é uma possível migração de esforços e financiamentos de cura de doenças para ela, deixando outras pesquisas igualmente importantes com pouco financiamento. A técnica não é barata e assim continuará sendo por um bom tempo. Que pessoas poderão se beneficiar dela? O que acontecerá com as pessoas que não podem pagar a CRISPR? Por outro lado, doenças que causam intenso sofrimento como a Distrofia de Duchenne podem ser eliminadas com o aprimoramento da técnica. Os resultados são animadores para a anemia falciforme que atinge uma percentagem considerável da população brasileira.
Ainda esse ano, a revista Nature revelou certo avanço na técnica em induzir a cura do câncer com o uso de células de defesa modificadas pela CRISPR. Essas células seriam especialistas em atacarem células cancerígenas, podendo ser uma revolução na cura de diversos cânceres. Os ensaios clínicos ainda estão sendo elaborados, mas as expectativas são enormes diante do avanço da técnica.
Estamos diante de uma encruzilhada, não podemos barrar o desenvolvimento da técnica que pode trazer a qualidade de vida para um número de pessoas que sofrem de enfermidades genéticas, o que seria simplesmente louvável. Mas não podemos negar que vivemos em um sistema que poucos enriquecem às custas do sofrimento de muitos, e quando esse sistema entra em crise, surgem forças obscuras para mantê-lo em ação- que estamos vendo acontecer no mundo com o avanço da extrema direita e do neonazismo. A técnica CRISPR atravessa tais dilemas da humanidade.
Deixo essa discussão ética para os colegas sociólogos e filósofos – que sabem discutir sobre a humanidade melhor que eu, bióloga de formação. Mas vejo que uma possível solução para esse impasse que é aumentar o número de mulheres, negros, negras, indígenas, pessoas lgbtqiap+, pessoas com deficiência, pessoas das diversas classes sociais na produção da Ciência. As carreiras STEM devem ser possíveis para a juventude e precisamos de diversidade nesse campo. Se as mais diversas pessoas podem produzir Ciência, as mais diversas discussões éticas são promovidas nesse espaço e menos injustiças são cometidas. Agora se o conhecimento fica na mão de poucos, teremos a receita fatal para destruição da democracia e para desfechos sombrios neonazistas.
Para que a diversidade na Ciência seja possível, é urgente a regularização das carreiras científicas. Direito à carteira assinada, aos direitos trabalhistas, férias e descanso. Hoje os cientistas no Brasil e no mundo vivem de bolsas, sem trabalho regulado, e muitas vezes essas carreiras só são possíveis para pessoas de famílias ricas. Sem regulamentação da carreira STEM não há democracia!
E você? Qual sua opinião sobre essa técnica tão promissora de edição de genes humanos?
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Fontes:
Genera. Mulheres na ciência: quem é Emmanuelle Charpentier e seu papel na descoberta do Crispr? Acesso em: https://www.genera.com.br/blog/emmanuelle-charpentier-crispr/
Dai, X., Park, J.J., Du, Y. et al. Massively parallel knock-in engineering of human T cells. Nat Biotechnol (2023). https://doi.org/10.1038/s41587-022-01639-x
Hiramoto, T., Kashiwakura, Y., Hayakawa, M. et al. PAM-flexible Cas9-mediated base editing of a hemophilia B mutation in induced pluripotent stem cells. Commun Med 3, 56 (2023). https://doi.org/10.1038/s43856-023-00286-w
Ledford, H. CRISPR deployed to combat sickle-cell anaemia. Nature (2016). https://doi.org/10.1038/nature.2016.20782
Zats, Mayana. Os avanços em terapia gênica com CRISPR Cas-9. Jornal da USP. Acesso em: https://jornal.usp.br/radio-usp/os-avancos-em-terapia-genica-com-crispr-cas-9/
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