A DIVA DO AVIÃO E A FAMA DO ANONIMATO

Aconteceu já faz alguns dias, portanto, vou aproveitar logo antes que o assunto envelheça: Uma passageira teria se recusado a ceder o assento do avião a uma criança e com isso, teve sua atitude registrada por um celular e jogada na internet. Esse momento – que deve ser corriqueiro em transporte público cotidianamente – foi suficiente pra viralizar e fazer com que essa moça tenha conseguido até agora mais de 2 milhões de seguidores! Vou repetir: 2 MILHÕES. Isso porque a pessoa que registrou a ação queria mostrar o quanto Jenifer Castro, a famosa “dona” do assento, não teria tido a mínima humildade em corresponder aos anseios de uma criança chorona, que queria sentar naquele lugar ali. O tiro saiu pela culatra e teve efeito reverso. Ela teria conquistado seguidores justamente por não ter cedido o lugar a um menino mimado e com muitos internautas criticando a mãe por estar criando o filho cheio de vontades. Esse caso mostra o quanto as redes sociais – que tá mais pra antissociais! – dão margens a transformar anônimos em famosos de um dia para o outro em uma velocidade estonteante e pelos motivos mais bestas. Jenifer inclusive, já fechou um contrato publicitário com a Magazine Luiza!! Imaginem que loucura: você acorda de manhã como mais um qualquer e horas depois dorme após ganhar milhares de seguidores, ser assunto do dia, e ter seu ato comentado por Léo Dias. Pare o mundo que eu quero descer!!

A gravação do vídeo tinha como prioridade, o que ficou claro, de espezinhar Jenifer, de mostrar o quanto ela era uma pessoa sem coração ao negar trocar simplesmente o lugar com uma criancinha e assim o tribunal virtual cair de pau nela, um linchamento digital típico. Daí, eu ter citado que tá mais pra rede antissocial, porque a motivação do vídeo foi pra que houvesse um destrato público, assim como muitos que pululam por aí. As pessoas acham natural ficar filmando você e sair divulgando sua imagem por aí ao léo. Com o efeito contrário ao desejado, Jenifer se torna mais uma anônima que vai aproveitar seus quinze minutos de fama pra faturar. Isso porque um entrevero aéreo bobo virou assunto até de programa televisivo em horário nobre! Pra termos uma idéia do quanto estamos valorizando bobajadas aleatórias, enquanto muita gente luta com afinco há anos pra tentar produzir um material que traga algum tipo de reflexão filosófica, social, cultural ou espiritual.

A novidade é que não foi a mãe que filmou a cena, nem o motivo teria sido um lugar na janela da aeronave. Quem filmou foi uma outra passageira, que entendeu a coisa de um jeito e não teria sido nada disso. A criança teria chorado porque queria ficar perto da avó, e aí gerou esse mal-entendido total. Jenifer contou a versão dela, a mãe da criança contou outra, a “produtora” da filmagem pediu desculpas, enfim, um bololô tolo que virou mais uma ocorrência caça niqueis, com big tech ganhando mais acessos, site de fofoca vendendo seu peixe, e Jenifer surfando na onda.

E quando seu ato é extremo e assim se conquista uma vaga no Congresso Nacional? Tudo isso me lembrou do episódio Kátia Sastre. Não se recorda ou ignora tal fato?

Em março de 2018, um meliante resolveu assaltar um grupo de mães na porta de um colégio em Suzano, São Paulo. Uma delas, era cabo da Polícia Militar fora de serviço e reagiu à tentativa baleando o sujeito. Ela foi homenageada pelo então governador Marcio França pela ação. Um partido convidou-a para integrar chapa proporcional pra eleição daquele ano e pimba! Foi eleita deputada federal com 264 mil votos. Tudo isso foi registrado por câmeras e passou em diversos canais de televisão, não foi um fenômeno das redes. Porém, o que se destaca é que uma ação policial transformou uma militar que estava a paisana em uma parlamentar meses depois. Tudo porque conseguiu matar “um vagabundo” e com isso ganhou méritos para ser uma proponente de leis constitucionais de um país! E aí notamos a sociedade do espetáculo que gera do dia pra noite uma notória figura que ganha milhões de seguidores e outra que se torna uma congressista. Katia Sastre – a policial – passou incólume os quatro anos de mandato e não foi reeleita. Foi apenas uma mãe parada na porta do colégio que aproveitou bem um acontecimento – que gerou um assassinato! - mas que a alçou do anonimato para um posto eletivo num piscar de olhos. Se o fato ocorresse antes das eleições municipais, Jenifer poderia ter sido convidada em situação semelhante e, caso aceitasse, poderia hoje ser uma vereadora eleita – com nenhuma plataforma política, diga-se de passagem.

Pra vocês terem uma ideia, nem sei a profissão dessa moça, uns sites dizem que ela é bancária, outros que ela é influenciadora. Ela pode até perder centenas de milhares de seguidores futuramente, seja por posições ideológicas adversas a esses “desistentes” ou por caírem na real que seguir ela não representa porra nenhuma. Mas uma coisa é certa: temos que ter cuidado ao discutir no trânsito, pisar no pé de alguém e não se desculpar, deixar de devolver o troco errado, ou protestar que o caixa do supermercado tá muito devagar. Qualquer celular pode estar a seu alcance filmando seu piti, sua desconsideração, ou sua falta de iniciativa pra algo. Ou que o próximo deputado campeão de votos pode ser um Zé Ruela que tá atravessando a rua agora e se depara com um buraco e faz um vídeo criticando duramente a prefeitura, fazendo um mise en scène daqueles, parecendo encenar uma comédia stand up. E gente que valoriza esse tipo de coisa, segue e vota num anônimo-famoso, que costuma reclamar que o país “tá uma merda”.  O que em todos esses casos o viralizado tem a oferecer pra qualquer mudança, não se sabe. No entanto, todo esse nada acrescentado a coisa alguma pode render um artigo.

FONTE:

Diva da Janela: mulher que não cedeu assento à criança mimada se pronuncia | Revista Fórum

"A cena me perseguia", diz mãe de assaltante morto pela PM Kátia Sastre diante de escola - Época

Viral após negar assento de avião à criança, Jennifer Castro fecha publicidade com Magalu | Exame