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Foto do escritorAlan Rangel

A Democracia e o corpo sem alma


O sociólogo alemão Max Weber, chama aquele que não vive-da-política de políticos ocasionais. O eleitor ocasional, em geral, só participa da política ao votar. Se este ato não fosse obrigatório, será que teríamos mais abstenções? Meu palpite é de que sim. Afinal, a nossa democracia é um corpo sem alma.


Há anos voto num bairro popular de Salvador. Com toda essa experiência acumulada percebo que se existe algum espírito republicano e liberal no cidadão democrata, ele não reina entre nós. Se serve de consolo, não é um caso tipicamente brasileiro.


No meu trajeto cívico encontro enxurradas de santinhos nas ruas, tornando a cidade mais imunda do que já é; boca de urna em vários lugares; mini paredões aqui e acolá, com sons que nada invocam alguma áurea patriótica; pessoas sem máscaras desrespeitando o decreto municipal, ignorando qualquer tipo de zelo às leis ou a vida alheia. Tudo isso me leva a crer, que o dia da votação é mais um feriado desprovido de qualquer sentido simbólico. O ritual do voto é um ritual disforme, fantasma.


Sejamos realistas: a democracia representativa liberal é meramente uma luta entre concorrentes livres disputando o voto popular. Encaremos a sua formalidade procedimental. Os candidatos fazem de tudo para chegarem ao poder, desde promessas públicas até compra de votos (ato ilegal mais visível nos rincões do país).


Em Pindorama, os votos, via de regra, têm caráter personalista ou identitário. Em menor escala, tem hábito partidário. Pouco importa se o candidato tem conhecimento ou compromisso com o fazer política. O cidadão médio mostra-se desinteressado ou ignorante sobre como funciona basicamente os mecanismos de construção de projetos de leis, requerimentos e outras ferramentas legais disponíveis aos representantes. Muito menos mostra-se dedicado a participar de espaços em conselhos e orçamentos públicos. Isto quando eles existem. Há muitas variáveis a serem pesquisadas sobre a apatia, desde a explicação econômica, passando pela questão territorial, populacional, cultural, educacional e política.


Os dirigentes dos partidos políticos escolhem seus candidatos. Pouco importa, com raras exceções, se os competidores têm compromisso com a defesa das instituições ou noção mínima sobre as regras do jogo democrático. Se vão escolher políticos profissionais ou outsiders, é detalhe mínimo; a meta é chegar ao poder. Sendo popular, carismático ou demagógico, conforme os desejos dos consumidores/eleitores, ávidos por um bom produto, os postulantes serão aprovados. Alguns terão mais recursos do que outros durante a corrida eleitoral. Ao fim e ao cabo, interessa ao líder partidário maximizar o número de ganhadores, o que lhe garante cargos, influências e recursos públicos por alguns anos.


O maior problema de termos um eleitor mediano, pouco esclarecido sobre os direitos e deveres republicanos, é confinar sua participação política ao voto. Ele não acompanha o eleito durante o mandato: se comparece sempre à Câmara; se está sempre no plenário; se constrói projetos de leis ou indicações mirando os problemas do bairro; se fiscaliza o executivo. Em resumo: delega a condução da cidade ou do país sempre nas mãos dos representantes. Deveríamos saber que estes são falhos. São humanos, não seres celestiais. Também não deveríamos esperar que os políticos sejam responsivos com todas as promessas feitas durante a campanha. O velho ditado ainda vale: falar é uma coisa, fazer é outra.


Quando a participação é restrita ao voto, lavamos as mãos sobre responsabilidades que deveríamos ter como cidadãos mais ativos e conscientes. Não podemos viver só cobrando direitos. Temos ainda que assumir nossos deveres, fiscalizar e acompanhar aqueles que estão encarregados pelas decisões mais importantes sobre a cidade e o país. Precisamos cumprir nosso papel, cotidianamente, de forma mais coletiva. Obrigações mínimas, como não jogar lixo na rua e nas praias; não incomodar as pessoas com decibéis exagerados; não passar no sinal vermelho fora dos horários permitidos; não andar fora da calçada; respeitar os sinais de trânsito e os limites de velocidade. Nenhum corpo de representantes será capaz de identificar e muito menos solucionar todos os problemas locais. Jamais existirá um regime político em que todas demandas do povo sejam plenamente atendidas! Pior ainda numa democracia, no qual as demandas são infindáveis.


Em paralelo, os candidatos escolhidos deveriam passar por um crivo muito mais técnico, ético e com mais expertise política. É papel das lideranças dos partidos selecionar melhor seu quadro. Se a ânsia for sempre pela caça aos votos, não há esperança. Se ainda resta algum traço de princípio, de respeito aos valores democráticos e liberais, não deveriam aceitar candidatos que desrespeitam os direitos humanos e individuais, que vociferam contra as instituições livres, incitam a intolerância e promovem a indecência. Quando esse é o caminho escolhido, a qualidade da classe política cai drasticamente. Efeitos maiores já apontam crises de representatividade e um perigo à própria existência da democracia representativa.


Quando se permite que a ralé componha o quadro político - por eleição ou indicação – eles ganham espaço para emitir discursos e práticas disruptivas, conflituosas (vide os políticos da extrema direita brasileira); utilizam canais oficiais a fim de normalizar a barbárie, usando da retórica da agitação permanente, incendiando os fanáticos e alcançando as massas. Estas são maiorias isoladas por sua própria natureza, neutras, indiferentes, ausentes de relações sociais normais, e fadadas a encantamentos imaginários.[1] Não é muito difícil convencer uma maioria quanto à ineficácia ou morosidade do estado de direito, principalmente em regimes mais jovens.


De acordo com o economista Joseph Schumpeter[2], deve haver princípios estruturais na sociedade democrática para que seja possível criar condições civilizadas, vislumbrando longevidade. Condições básicas na resolução de problemas sem apelar a métodos autoritários.


A desvalorização dos princípios democráticos, o desconhecimento ou a apatia no que tange às responsabilidades republicanas, cedo ou tarde, mais aceleradamente, fará o regime político definhar. Se é impossível resistir à finitude dos governos, segundo os grandes teóricos da política, ao menos é possível tentar prolongar a sua vitalidade.


“ Não depende dos homens prolongar a própria vida, mas depende deles prolongar a do Estado pelo tempo que for possível, dando-lhes a melhor constituição que possa ter”.[3]

Nem mesmo as instituições conseguem dar conta de resolver sozinhas todos os atos antipolíticos e arroubos autoritários. Não havendo zeladores que as defendam, há pouca esperança. A democracia continuará sendo um corpo sem alma, até que o corpo vire pó.


NOTAS

[1] Ver Origens do Totalitarismo. Autora: Hannah Arendt. [2] Ver Capitalismo Socialismo e Democracia. Autor: Joseph Schumpeter. [3] ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Nova Cultura, p. 177, 2005.


Link da imagem: https://www.badycuri.com.br/blog/sofrimento-humano-virou-palanque-politico/

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