A DEMOCRACIA AINDA TEM JEITO?
- Alan Rangel
- 10 de abr. de 2023
- 5 min de leitura

O ensaio de hoje é somente um experimento livre, mas algo propositivo. Acredito que precisamos ter mais propostas.
Direto e ao ponto: a democracia liberal tem uma questão central, um pressuposto ontológico, de que indivíduos são extremamente soberanos, seres racionais e autônomos capazes de escolher os meios mais eficientes para chegar num fim certeiro, de aproveitamento máximo. O objetivo central seria a redução de custos. Inclusive essa é uma premissa do homo economicus, do liberal raiz. Pergunto-lhes, na democracia liberal, qual a mais eficiente redução de custos, pensando na longevidade do sistema? Resposta: que todos os indivíduos, iguais em potência, ajam com a responsabilidade de escolher os políticos competentes; ler e refletir sobre o estatuto do partido e seus princípios; avaliá-los ao longo de seu mandato, e, em seguida, decidir puni-lo ou não no próximo pleito eleitoral. E mais: é preciso também defender os valores do Estado Democrático de Direito e tudo aquilo que é pregado em termos de liberdade e igualdade e, ao mesmo tempo, ter ciência de que o político eleito também seja um defensor dos valores que ali estão, sob risco de que, por exemplo, a possibilidade de escolher um representante político, num regime democrático, no próximo pleito, vá para o brejo.
Só aí já temos um problemão... Se, efetivamente, olharmos para a empiria, o real concreto, conceber indivíduos tão bem capazes de tomar as melhores decisões, escolher os melhores políticos, tudo isso alinhando com as regras do jogo democrático e a defesa dos princípios fundamentais, não é uma ficção liberal? Já causa certa angústia.
Na teoria do elitismo político, a democracia ainda mantém algum nível aristocrático fundamental para manter o sistema, pois quem está no poder ainda é uma minoria, e seria insustentável que todos participassem, pois isso levaria a um caos social. Todavia, o regime não consegue, a médio e longo prazo, evitar a ampliação da participação, o que inclui dar voz a todos. Isso tende, naturalmente, nivelar a política; ou seja, todos podem ser políticos, todos podem falar sobre política (inclusive negando a sua existência), todos podem opinar sobre algo, todos podem votar. Em suma, todos os indivíduos acham-se capazes de tomar as melhores decisões. Consequência: abre-se as portas, para ser muito franco, a todo tipo de delinquência moral e intelectual: insano espaço para defender a existência de um regime nazista no Brasil, ou mesmo eleger um presidente da república que elogia torturador, é anti vacina e não gosta da democracia.
Ainda há um outro problema insolúvel nesse regime: a coexistência com o capitalismo. O modo de produção capitalista, que não é só um mero sistema econômico, coloniza nosso tempo, nossas relações sociais e políticas, estimula o consumo para reduzir nossas dores e angústias cotidianas, mexe com nossos afetos, e ainda nos obriga a lutar sozinhos pela sobrevivência diária. Sobra espaço muito reduzido para participar dos negócios da política, como, por exemplo, assistir votação de um projeto de lei no seu município, ou mesmo assistir programas que falam só sobre política interna e externa ao país.
Olha quantos problemas... Vamos pensar agora no Brasil.
Talvez devamos começar a questionar se, de fato, a democracia liberal seja, realmente, o regime mais assertivo. Lanço aqui uma provocação: e se a gente defender uma república diferente? A minha proposta é de uma nova república pautada em corporações profissionais: professores, artistas, operários, comerciantes, médicos, industriais etc., seriam eleitos pelos seus pares. Eu sei que muitos de vocês acham que isso poderia piorar a nossa situação, que só agravaria a falta de unidade ou mesmo concentraria recursos. Mas vamos com calma, meus críticos. Vamos tentar melhorar a qualidade da nossa classe política.
Poderíamos pensar na paridade de vagas para cada categoria, isso a nível municipal, estadual e federal. Eles fariam parte do Legislativo. Claro que haveria um grande debate sobre as corporações. Eu sei que haveria lobbies para tudo que é lugar. Mas a ideia é incorporar o máximo possível de categorias.
E os candidatos, só o seriam por causa da sua profissão? Não haveria outros critérios? Resposta: sim, deve ter outros filtros. Quais? Penso em três: longevidade na profissão, talvez quinze anos; não ser ficha suja e ser vinculado a algum tipo de organização que tenha se dedicado a projetos sociais e de luta política. Haveria cota? Não sei, deveríamos pensar, a depender da necessidade. E quem vai financiar as campanhas? Somente o Estado, público. E mais: recursos iguais para todos. Além disso, podemos reduzir o número de partidos, pois as categorias poderiam ser alocadas em diversos espaços da mesma agremiação, claro que dentro de valores aceitáveis em uma democracia.
E o voto seria proporcional de lista aberta, fechada, voto distrital puro, misto? Resposta: é mais viável lista fechada, cabendo ao partido a escolha das listas. Há países, por exemplo a Argentina, em que há prévias com membros dos partidos para decidir a ordem dos candidatos na lista. Também defendo o voto distrital misto: para cargo legislativo, o voto seria somente no partido; em cargos executivos, prefeito, governador e presidente o voto seria no candidato.
E o executivo federal? Minha proposta é sair do sistema presidencialista e migrar para o semipresidencialista. Na prática, há um primeiro-ministro eleito pelo Congresso, e um presidente eleito pelo voto popular. A discutir quais os poderes de cada um. Mas, com isso, você teria agora um chefe de estado diferente do chefe de governo, descentrando o hiper presidencialismo brasileiro.
Os critérios dos candidatos ao cargo de presidente, governador ou prefeito passariam também pelo crivo apontado anteriormente, mas tendo uma decisão intrapartidária com todos os segmentos profissionais na escolha do melhor candidato na defesa dos princípios gerais da legenda.
Sei que a proposta aqui talvez não seja a radicalização da democracia, mas é uma tentativa possível, ou alternativa, de torná-la melhor. O que a gente fez até hoje só foi adotar o que vem de fora, sem olhar nosso contexto.
Ao fim e ao cabo, a proposta experimental de um regime político mais concentrado em corporações poderia reduzir, e muito, a concepção de que cada um pode votar em qualquer pessoa da sociedade, sem nenhum tipo de filtro, ou mesmo sem nenhum tipo de critério. Há alguns ganhos possíveis: descolonização do poder econômico sobre o político nas campanhas e posteriormente; voto não obrigatório; só pessoas que atendam a determinados critérios podem ser candidatos; redução do personalismo; separação entre chefe de estado e chefe de governo; criação de paridade profissional; aproximação dos partidos e candidatos com o cidadão de seu distrito; fortalecimento do sistema partidário, hoje tão atacado pelos outsiders; por fim, redução de partidos políticos, o que diminui a complexidade ideológica aos olhos do eleitor e, ainda, diminui gastos com fundo eleitoral e partidário.
O que vocês acham? Qual a proposta de vocês? Deixem ai seus comentários.
Link da imagem: https://jornal.unesp.br/2023/01/08/a-democracia-nao-pode-acobertar-terrorismo-ou-perecera/
Preciso pensar melhor... Há alguns pontos que eu nunca havia refletido. Por outro lado, a primeira impressão é de uma proposta bem radical. De qualquer forma, é preciso explorar outras alternativas.
Alan, gostei muito da primeira parte do artigo, especialmente pela crítica que você faz a essa exigência quase que aristócrática para se manejar a democracia. Quando leio Habermas e a sua defesa de uma racionalidade comunicativa para a construção da democracia, por vezes, me parece apontar esse víes aristocrático. Contudo, levei um susto quando vi a proposta corporativista. Digo isso porque sou um leitor de Oliveira Vianna e tenho trabalhado com a obra dele nos últimos anos. E o corporativismo no Brasil foi trabalhado de maneira autoritária, com meio utilizado pelo Estado para evitar a tensão da política e harmonizar capital e trabalho sob a tutela estatal. Não que o corporativismo seja instrinsicamente autoritário, pois há experiências democratizantes na década…