Vamos resenhar um texto clássico: o Posfácio do livro Eichmann em Jerusalem: um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt.
Neste pós-escrito, a autora rebate as críticas que sofrera após escrever o seu livro, e reforça questões que já havia sinalizado anteriormente. A primeira defesa de sua integridade intelectual e moral, é afastar qualquer possibilidade de que os judeus podiam ter se defendido contra a Solução Final, o projeto macabro dos nazistas. Acusaram-na de ter dito que os judeus teriam uma espécie de desejo de morrer inconsciente. Nada mais do que falso. Eles - os judeus - não tiveram chances contra a poderosa maquinaria alemã.
A sua obra foi focada no julgamento de Eichmann, “um homem de carne e osso com uma história individual, com um conjunto sempre único de qualidades, peculiaridades, padrões de comportamento e circunstâncias”[1]. Não era seu objetivo falar sobre totalitarismo, II Guerra Mundial, história do povo judeu, antissemitismo. Ela não se propôs justificar nada além do contexto produzido durante o julgamento. Generalizações não poderiam ser imputadas a ela. Qualquer tentativa de atribuir isto à autora seria desonestidade intelectual. No Epílogo, sim, ela foi além do Julgamento, tratando de questões de natureza mais geral.
A nossa filósofa judia ratifica que foi necessário a punição contra Eichmann. Sim, o acusado foi corretamente condenado “para defender a honra e a autoridade daquele que foi afetado pelo crime, de forma a impedir que a falta de punição possa causar desonra”. [2]Ou seja, a desonra do povo judeu.
O subtítulo, “a banalidade do mal”, não fora colocado ao acaso: foi um caso concreto, um fenômeno de carne e osso que encarou a todos no julgamento. Eichmann não era um ser de mentalidade diabólica, assassina, que arquitetara crimes, tal como um Macabeth ou Iago, personagens marcantes de Shakespeare. Sua única motivação e sua única racionalidade era melhorar seu posto profissional. Galgar mais prestígio. Não era um sujeito burro. Tinha noção do mundo em que vivia. Seu problema foi a falta de reflexão, o que contribuiu para torna-lo um dos maiores criminosos do III Reich.
Ele simplesmente não fez uma avaliação ou julgamento moral quando era oficial. Dizia que cumprira ordens. Seu comportamento, contudo, não foi algo excepcional; pelo contrário, foi lugar-comum. “Essa distância da realidade e esse desapego podem gerar mais devastação do que todos os maus instintos juntos – talvez inerentes ao homem; essa é, de fato, a lição que se pode aprender com o julgamento de Jerusalém”. [3]
O crime ali julgado foi, sem dúvida, sem precedentes na História. Os massacres administrativos corresponderam à novidade das ações perpetradas pelo governo alemão. Suas ações poderiam ter sido direcionadas contra qualquer grupo determinado, quaisquer humanos.
Arendt adverte também a estratégia da defesa em atribuir ao réu ser apenas uma mera engrenagem do sistema, que o inocentaria ou atenuaria seu suposto crime. Mas, como sabemos, a jurisprudência julga a ação do indivíduo, e não a uma máquina burocrática. O risco de aceitar tal tese pode levar a uma ideia perigosa de teorias de determinismo comportamental. “O que é indiscutível é que nenhum procedimento seria possível com base nelas, e que a administração de justiça com base nessas teorias seria uma instituição muito pouco moderna, para não dizer ultrapassada”[4]. O sonho de Hitler, sem dúvida, seria desenvolver uma completa lavagem cerebral, condicionando todas as pessoas a sempre agirem conforme suas ordens. Uma burocracia perfeita! Ainda bem que não chegamos a tal ponto. Pois, isso implicaria, leitores, a tornar obsoleta a existência de um tribunal.
Duas questões importantes foram utilizadas pela defesa. A primeira, é a teoria de Ato do Estado. Argumentaram que um Estado soberano não pode julgar um outro Estado soberano. Para a filósofa e os juízes não caberia tal argumento, pois atos de injustiça podem ocorrer num Estado dotado de legalidade, no qual crimes cometidos pelo próprio Estado tornam-se a regra, o normal. Em outros termos, aquele julgamento em Jerusalém, feito por uma Corte Internacional, era sim coerente, justa e necessária.
Uma segunda questão utilizada pela defesa de Eichmann: os atos desempenhados por ordens superiores. A isto, a própria Corte foi bastante contundente em rejeitar tal artificio teórico, ao dizer que “ordens manifestamente criminosas não devem ser obedecidas”. [5] Agir conforme o que os superiores pedem, sem nenhuma reflexão, mesmo dentro da lei, não pode ser um atenuante, pois, no caso de Eichmman, não fora um evento isolado, excepcional, mas, sim, uma postura que perdurou anos a fio; foi crime atrás de crime.
Das tentativas da defesa de livrar Eichmann, a Corte teve que tomar decisões inéditas, pois estavam lidando com um crime relacionado a fatos administrativos organizados pelo Estado. Não havia antecedentes, de acordo com a autora. Os juízes não tinham precedentes jurídicos, nos livros de leis, para lidar com o caso. Miraram na monstruosidade dos atos do réu. Não era um genocídio, pois este seria uma crime contra as nações ou povos. Era um crime contra a humanidade, um ataque á diversidade humana, ao próprio status de ser humano.
A filósofa se contrapôs também a um argumento de que, se nós não estivemos lá vivendo a experiência dos alemães, que sucumbiram aos ideais perversos de Hitler, não deveríamos fazer juízo de valor sobre os seus comportamentos naquele contexto. E que, portanto, todos ali foram levados a compactuar com o mal instrumentalizado. E que faríamos a mesma coisa nas mesmas circunstâncias.
Contra isto, e a despeito de todos os julgamentos ocorridos, e de todas as sentenças aplicadas, Arendt enxerga que à nível de um juízo da consciência individual, todos somos capazes de diferenciar o certo do errado, o justo do injusto, mesmo quando existe um estatuto legal e mesmo se opondo à opinião unânime. Qualquer tentativa de colocar abstrações gerais, como culpa coletiva ou inocência coletiva, que justificasse o massacre aos judeus, torna supérfluo o juízo individual; isenta-o de senso de responsabilidade.
O caso de Eichmann não foi o único. Eis a concussão da autora. Mas crimes banais só existiram em estados totalitários? Não. Comportamentos criminosos, potencialmente banais, existem também numa sociedade democrática.
Quando aceitamos as condições sub-humanas dos presos nos presídios, sem nenhuma reação popular contundente, também estamos aceitando a injustiça, inconscientes quanto à barbaridade diária. Ou quando minimizamos uma revista ou batida policial truculenta na periferia - que é um total desrespeito aos direitos individuais -, sendo indiferentes a algo tão rotineiro no Brasil, também normalizamos o mal, o errado. Ou, ainda, quando não nos indignamos com pessoas, adultos e crianças, mortas por “tiros acidentais”, tão comum nas comunidades pobres, a exemplo do Rio de Janeiro.
Quando estamos indiferentes e neutros com pessoas que morreram por causa da pandemia, e a gente sai sem máscara por aí; quando participamos de aglomerações, ausentes de responsabilidade pública, então também estamos compactuando com a banalização do mal social, da morte de milhares de pessoas.
Ao não sentirmos repulsa contra discursos e práticas que prejudicam pessoas, classes e grupos já aceitamos a normalização da delinquência moral e legal. A não reação, a irreflexão, o atrofiamento do juízo, a ausência de questionamento a políticos que fazem pouco caso das mortes, nos coloca no rol de criminosos passivos e conscientes. Agimos, como tal, à cópias de Eichmann.
NOTAS
[1] ARENDT, HANNAH. Eichamann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhis das leitras, p.309, 1999. [2] Ibid., p.310. [3] Ibid., p.311. [4] Ibid., p.313. [5] Ibid., p.315.
Link da imagem: https://www.alagoas24horas.com.br/blog/banalidade-mal-leva-pessoas-normais-cometerem-atrocidades/
Comments