Iai, vamos “decolonizar o saber?”. Provavelmente você já ouviu essa frase antes, muitas e muitas vezes, na verdade. A linha (pós) decolonial é a sensação do momento, o símbolo máximo de criticidade nos dias de hoje, um tipo de insígnia de distinção que muitos carregam no peito, ao menos em termos bourdiesianos. Como qualquer verbo da moda, o “decolonizar” invade todo tipo de circunstância, desde aulas, palestras, danças, filmes e até mesmo em conversas informais, como aquela que você tem com seu amigo na mesa de bar. Embora pareça simples, muitos distorcem o conceito de forma não apenas problemática, mas também perigosa, dando munição desnecessária ao inimigo. Como qualquer ferramenta prática, conceitos precisam de cuidado e muita experiência, além de centenas e centenas de testes, avaliações, e exames, caso contrário crises brotam no caminho. Logo abaixo existem seis grandes erros encontrados no uso do verbo “decolonizar”, principalmente levando em conta postagens e comentários informais no Facebook e Instagram. Por outro lado, quando se trata de veículos de comunicação mais formais, como artigos e livros, normalmente esses problemas não aparecem, já que existe todo um conjunto de peneiras acadêmicas responsáveis pela seleção do que é dito e escrito, coisa que não acontece no universo das redes sociais.
Como o pensamento (pós) decolonial não é um todo homogêneo, sendo até mesmo contraditório, preciso esclarecer um pouco as coisas antes do nosso mergulho mais epistêmico. A partir do raciocínio que adoto nessas linhas, eu sigo a trilha deixada por autores vitalistas (genealógicos), como Martin Savransky, Spivak, Viveiros de Castro, Tim Ingold, Judith Butler e muitos outros. Em outras palavras, isso significa que entendo como (pós) decolonial todo tipo de hermenêutica da suspeita direcionada ao combate daquilo que Derrida chamou, em sua gramatologia, de logocentrismo e seus desdobramentos etnocêntricos.
1) Não é uma simples mudança de predicado. Muitos acreditam que a postura colonial, representada como um desdobramento do ocidente e seu projeto moderno (Mignolo), apenas “diminui” e “insulta” a presença do outro, como é o caso dos grupos minoritários (mulheres, negros, indígenas, Lésbicas, Gays, Trans, etc). Nesse sentido, a postura decolonial, ao contrário, supostamente inverteria os predicados em jogo, colocando todos de cabeça para baixo. Por exemplo, ao invés de “inferior”, colocamos “superior”. Ao invés de “ignorante”, colocamos “sábio”, e por aí vai. O que muitos não entendem é que a estrutura colonial não se encontra no predicado usado, mas na própria estrutura de predicação, na própria tendência e arrogância em nomear, universalizar e essencializar o outro. Por esse motivo, o objetivo principal é fugir de qualquer abstração, trazendo a experiência concreta, complexa, e até contraditória, do outro no mundo. Esse outro não pode ser apenas apresentado como uma simples peça no tabuleiro dos jogadores “ocidentais”. Graças a etnografia decolonial de Viveiros de Castro, é possível acolher o outro como outro, e não apenas como antítese do ocidente, trazendo consigo agora seus próprios caminhos, suas histórias e suas realidades. É necessário evitar aquilo que Spivak chamou, no prefácio da gramatologia, de “etnocentrismo reverso”, ou seja, uma pretensão de romantizar, de uma forma bem rousseauniana, a presença do outro. Como disse no começo, não é o bastante apenas remover predicados negativos, mas implodir a própria estrutura de predicação, deixando que o corpo e a experiência do outro apareçam como reais e concretos, e não apenas um simples pretexto dentro da minha narrativa conveniente.
2) Não existe nostalgia. Como é possível perceber em figuras como Spivak, quando o discurso dominante é implodido, quando a presença do colonizador é descentrada, o que se descobre no final do percurso não é “meu verdadeiro eu”, muito menos minha essência até então reprimida. Essa nostalgia, com tons bem conservadores, e até perigosos, não combina em nada com o pensamento (pós) decolonial. Da mesma forma que na psicanálise, como resultado direto da associação livre e suas origens genealógicas, o que conseguimos no fim da jornada é um campo descentrado de experiências, e não uma causa ou um núcleo metafísico perdido nas profundezas do mundo ou da minha própria subjetividade. Em outras palavras, quando o Brasil se afasta da dominação europeia, quando recusa sua presença vertical e sufocante, ele não encontra suas raízes perdidas e românticas, mas sim um campo complexo e até contraditório de possibilidades, ou seja, uma abertura sem muitas garantias (Stuart Hall). No pensamento (pós) decolonial, a proposta não é substituir um “significante” (O Europeu) por outro (O Brasileiro), caso contrário continuaremos mais uma vez presos na estrutura logocêntrica, apenas trocando as posições.
3) Não é apenas uma crítica ao poder negativo. Foucault, em seu clássico “vigiar e punir”, define o poder negativo como uma instância grosseira, externa e vertical, sendo aquilo que normalmente as pessoas entendem pelo conceito. Apesar da popularidade dessa definição, e até da própria conveniência associada a ela, existiria, segundo Foucault, algo mais sútil, complexo e, por isso, perigoso. O “poder positivo” é uma espécie de força suave, espontânea, nem um pouco grosseira, já que não se opõe a sua identidade, te oprimindo ou ameaçando, mas pelo contrário. O poder positivo é formador, constituinte, definindo os limites do meu eu, de quem sou, do que acredito, assim como as condições de possibilidade do meu próprio pensamento. Implodir os alicerces iluministas do universo colonial, e seu projeto sombrio (Mignolo), não é apenas criticar o que me convém, ou seja, práticas que me reprimem, ameaçam ou negam minha identidade, mas também todas as formas sutilmente dissolvidas na minha própria estrutura de linguagem, formas que definem quem nós somos. Um exemplo disso é a nossa obsessão logocêntrica por “coisas por trás”, por verdades ocultas nas profundezas do mundo, ou escondidas na subjetividade de alguém, aquilo que Martin Savransky chamou de ética do estranhamento. Butler, em seu clássico livro “problemas de gênero”, identifica essa tendência logocêntrica no feminismo da segunda onda e sua defesa metafísica da “emancipação da mulher”. Essa busca alucinada por essências, verdades ocultas, sujeitos legítimos, causas intocadas, universalidades convenientes e representações claras, perdem de vista o núcleo chave de toda postura (pós) decolonizadora, isto é, seu descentramento, seu caráter diferencial, contingente e aberto. Ao invés de uma identidade perdida no núcleo do próprio mundo, temos apenas relações, encontros, experiências e aquilo que Butler chamaria de performatividade. O pensamento (pós) decolonial não trabalha com causas, nem mesmo com essências, mas redes complexas e contraditórias de relações, encontros e pensamentos. Em outras palavras, ela trabalha de um jeito genealógico e com uma abertura de possibilidades de fundo, o que nos leva direto a uma esfera sem garantias, muito menos um espaço homogêneo.
4) Não é uma arma ressentida direcionada ao outro. A (pós) decolonização não é uma simples lança direcionada a um outro que não gosto. Não é apenas um pretexto para descontruir instituições que me ameaçam e insistem ficar no meu caminho. A atitude (pós) decolonial é também uma autoanálise, uma autoinspeção nas profundezas do meu próprio ser, dimensões tão íntimas que jamais tive o cuidado de avaliar. Não é coincidência que os textos de Spivak, Mignolo, Viveiros de Castro e Savransky dedicam sempre suas primeiras páginas para uma autoanálise, principalmente reavaliando os alicerces da teoria social, assim como as próprias ferramentas epistêmicas usadas em pesquisas, encontros, palestras e aulas. Antes de sair por aí numa caça às bruxas, atrás de todos os desviantes morais que possam aparecer, é preciso se voltar contra si mesmo, rastreando os traços de colonialidade naquilo que menos suspeitamos. “Decolonizar o saber” não é uma simples lança, não é um mero escudo, mas um campo complexo de auto-reflexão, um breve instante de silêncio, quase como uma pausa momentânea em nossas justificações, conveniências e certezas. É a chance rara que temos de compreender nossos limites, assim como nossos toques de arrogância.
5) Não é algo tão confortável como parece. “Decolonizar” não significa o encontro com um reino mágico e agradável, em que todos dançam de mãos dadas em torno de alguma essencialidade qualquer. "Decolonizar" significa implodir coisas convenientes a mim, elementos que definem quem eu sou. Isso significa que esse verbo sempre vem associado a um certo toque de angústia, desconforto e até mesmo um tipo de crise existencial. Na medida em que o outro ganha autonomia, na medida em que a realidade ultrapassa os limites da minha própria expectativa, o risco de ser frustrado aumenta também. O outro deixa de ser uma peça conveniente do meu tabuleiro (de esquerda ou de direita), e começa a ter contornos próprios, assim como um corpo que transborda e singulariza tudo o que toca. Decolonizar o outro é reduzir, ao mesmo tempo, nossa pretensão, nossa arrogância e toda certeza que temos a respeito de quem o outro é ou deve ser. É o próprio outro que deve narrar sua ontologia (Viveiros de Castro), seu mundo, sua própria estrutura de realidade, mesmo que essa narrativa entre em choque com minhas expectativas. É na frustração do outro que a decolonialidade se afirma, quando o outro deixa de ser o extremo do ocidente e começa a se apresentar com autonomia e singularidade. “O outro é ignorante ou é sábio, é corrupto ou honesto, é bonito ou é feio?”, pergunta você, curioso. E a resposta decolonial seria: “vamos ao mundo, vamos conviver com o outro concreto, complexo, contraditório. Esqueça essas abstrações e venha mergulhar de cabeça na realidade”.
6) Não é um sinônimo de liberalismo. Muitos acreditam que decolonizar o saber significa uma postura liberal e um compromisso absoluto com o indivíduo e suas escolhas. Em outras, decolonizar significaria uma crítica a todo tipo de instituição, qualquer coisa que se impõe ao indivíduo e suas particularidades. Esse modo liberal de pensar não se aplica ao que eu chamo de decolonização. Não existe aqui um abandono das instituições, muito menos uma hipervalorização do indivíduo e suas escolhas, mas uma remodelagem dos fundamentos institucionais, o que é algo muito diferente. No pensamento decolonial continuamos refletindo em termos coletivos, com critérios em comum, dentro de padrões gerais de convivência, embora usando outros termos. Não saímos das instituições para o terreno “livre” e “emancipatório” do indivíduo, mas reformulamos as fronteiras institucionais, nunca perdendo de vista o fortalecimento do debate público e dos critérios coletivos de convivência. Ser decolonial não é jogar debates complexos (religião, sexualidade, etc) para o terreno do privado, como liberais gostam de fazer, mas permitir que esses debates encontrem válvulas seguras e legítimas de acesso ao mundo público.
Referência da imagem:
https://partidopirata.org/decolonizar/
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