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Foto do escritorThiago Araujo Pinho

O QUE É UMA ESQUERDA CONSERVADORA?






Quando você escuta a palavra “liberalismo”, o que passa pela sua cabeça? Provavelmente vários contornos de direita, economicistas, quase sempre envolvendo privatizações estatais, precarização do trabalho, além de outros problemas. Sem dúvida, tudo isso caracteriza muito bem o mundo (neo) liberal, mas algo falta nesse retrato conveniente, algum complemento necessário. Existe aqui uma face pouco discutida, mas extremamente perigosa, uma que passeia pelos corredores de humanas de um jeito imperceptível, espontâneo. Segundo figuras como Ricardo Antunes e Slavoj Žižek é possível falar de uma esquerda (neo) liberal, com características muito bem definidas, ainda que mascaradas e até misturadas com correntes de pensamento populares no cenário acadêmico, como o pós-estruturalismo e linhas decoloniais. Logo abaixo existem cinco características que definem esse tipo específico de esquerda, um esquerdismo tão popular que se tornou invisível, camuflado em propagandas, filmes, séries e até desenhos animados.

1) Dualismo: Se você quiser identificar um membro da esquerda (neo) liberal logo de cara, existe um teste rápido, fácil e indolor. Quando você investiga com calma, dissecando um pouco tudo o que é dito pelos seus membros mais engajados, todos trazem de forma implícita um dualismo estranho entre indivíduo e instituição (sociedade). De um lado, temos as instituições (sociedade) apresentadas como artificiais, opressivas e sufocantes, e, do outro, o indivíduo como uma célula sólida, originária e confiável demandando emancipação. Isso é o que Žižek definiu como “atomismo liberalista” (ŽIŽEK, 1991, p. 155), a crença no indivíduo como um átomo intocado, ansioso para se libertar de todo tipo de peso externo. Em outras palavras, no mundo (neo) liberal existe uma “propagação de um subjetivismo e de um individualismo exacerbados” (ANTUNES, 2001, p. 35).


Temos aqui a clássica defesa de uma liberdade negativa, típica de figuras como Stuart Mill, ou seja, nesse modelo ser livre é basicamente o contrário de restrições externas. Eu sou livre apenas quando sou capaz de preencher meu desejo sem constrangimentos, repressões e influências alheias a mim mesmo. Ao contrário desse modelo, eu aposto em sua vertente positiva, já que ela parte de vínculos de interdependência, ao invés da abstração de um indivíduo soberano. Sou livre não porque sou independente, emancipado, mas interdependente, demandando sempre certas condições de possibilidade materiais e simbólicas que me permitem ser ou fazer algo. Não existe aqui um dualismo entre indivíduo e instituição (sociedade), já que a liberdade individual só faz sentido dentro de vínculos institucionais de interdependência. Isso não significa simplesmente que eu dependo das instituições, mas que meu próprio “EU” já é uma instituição, uma rede entrelaçada de experiências. Por exemplo, se eu quiser fazer minhas compras no mercado no fim do mês, eu posso, claro, mas apenas quando certas condições são atendidas:


1) Os produtores dos alimentos precisam produzir os produtos

2) Os caminhoneiros precisam transportar a carga

3) O mercado precisa gerir as cargas recebidas

4) Eu preciso de dinheiro, caso queira comprar algo

5) O Real, enquanto uma moeda brasileira, precisa estar estável o suficiente para ser usada, etc, etc, etc.


Eu poderia seguir até o infinito com esses exemplos de interdependência que garantem a minha liberdade positiva e até a própria sensação de que sou alguém especial, único e livre, mas não temos tempo. O importante é lembrar que a fronteira intransponível entre indivíduo e instituição (sociedade) é uma das bases da esquerda (neo) liberal, uma das marcas mais evidentes de sua atmosfera conservadora.


2) Privatização dos debates: Como consequência do “atomismo liberal”, todos os debates são privatizados, transformando a democracia em um simples condomínio privativo, nada mais do que um conjunto de cavernas onde os indivíduos satisfazem seus desejos sem obstáculos. “O que é a família?”, pergunta você curioso. E a resposta de um membro da esquerda (neo) liberal é simples: “A família é aquilo que os indivíduos decidem, não existindo nenhum parâmetro universal ou mesmo coletivo”. Entramos, portanto, no campo do contratualismo ético, epistemológico e estético. Tudo é definido a partir de contratos pontuais, estabelecidos por indivíduos provisórios em relações de consenso.


Pergunta: O que é o amor?

Resposta (neo) liberal: Depende do contrato que as pessoas estabelecem entre si, envolvendo cláusulas específicas a cada relação.


Pergunta: O que é a verdade?

Resposta (neo) liberal: Depende do contrato estabelecido por interesses provisórios, nada mais do que um pacto específico.


Pergunta: O que é o belo?

Resposta (neo) liberal: Também reflexo de um contrato estabelecido entre as partes ou, no mínimo, estabelecido consigo mesmo.


Observe que o critério nesse cenário contratualista, típico de um mundo (neo) liberal, recusa todo tipo de parâmetro externo ou coletivo, reservando aos indivíduos a responsabilidade de todas as dimensões, sejam elas éticas, estéticas ou epistemológicas. Como é possível perceber, o relativismo é um caminho inevitável, um destino óbvio nessa trilha (neo) liberal. Se ainda parece um pouco abstrato meu argumento, vamos a um exemplo concreto, retirado da minha própria experiência. Lembram do programa "Moisaco Baiano" na TV Globo? Lembra que existe nele uma sessão sobre moda? Em certo momento, embora não lembre exatamente quando, a apresentadora perguntou aos telespectadores: "o que é uma roupa bonita?" e ela mesma respondeu: “é a roupa que você se sente bem”. No fundo, ela trouxe a ideia implícita de que não existe nenhum critério objetivo ou coletivo de definição do que é belo. O indivíduo é apresentado aqui como a medida de todas as coisas, o parâmetro máximo que deve ser respeitado a qualquer preço. O belo, assim como o certo ou o verdadeiro, além de todos os debates que brotam desse terreno, são privatizados em nome de um indivíduo todo poderoso. Ao invés de esquentar a cabeça com debates coletivos, correndo vários riscos, a esquerda (neo) liberal privatiza tudo o que toca, não apenas a economia como muitos imaginam. É muito mais confortável responsabilizar o indivíduo, fugindo dos riscos de ser criticado e até odiado por sugestões levantadas.


3) Descentramento: É muito comum achar que o modelo (neo) liberal descentra o Estado enquanto uma instituição verticalizada, mas não é tão simples assim. Todas as instituições, sejam elas quais forem, passam por esse descentramento, deixando apenas o indivíduo como célula intocada, ou, como diria Élisabeth Roudinesco, o “Eu Soberano” é mantido intacto, confiável, sendo a única coisa real e disponível. Não apenas o Estado perde centralidade, mas instituições como família, ciência, política e arte passam pelo mesmo movimento. Isso significa que toda instância coletiva, seja ela qual for, tem suas bases descentradas, muitas vezes sem qualquer tipo de substituto concreto, a não ser um indivíduo desejante pulsando nos bastidores. Como resultado desse descentramento, a experiência é vista como a única coisa válida, enquanto critérios objetivos se reduzem a uma ficção desnecessária. Como é de se esperar do modo de produção capitalista, tudo é implodido em uma velocidade impressionante, o que levou Marx a sua clássica frase no Manifesto: “No capitalismo, tudo o que é sólido se desmancha no ar”.


4) Ressentimento: Nessa recusa de critérios coletivos, e suportes mais sólidos e confiáveis, muitas vezes nem sequer existem respostas individuais e provisórias, nem mesmo o mínimo é proposto. Diante desse cenário descentrado, o que muitas vezes encontramos pelo caminho é apenas um gesto ressentido, nada mais do que críticas direcionadas a coisas que me ofendem, me insultam. Não existe a proposição de nada novo, original, diferente, mas apenas um gesto agressivo que transforma a crítica em simples escudo e espada, nada mais do que armas de guerra nas mãos de indivíduos magoados com o mundo. Ou seja, o objetivo é apenas mostrar que instituições são falhas, precárias e contraditórias, nada mais do que uma pura resistência vazia. Esse ressentimento epistêmico, como disse Isabelle Stengers, cria uma esfera pública esvaziada de alternativas, contornos e sentido, sobrando apenas o ódio dos seus integrantes, além de uma brecha perigosa aproveitada por grupos reacionários.


5) Moralização: Como resultado de um atomismo liberal, é muito comum que problemas estruturais, complexos, e que demandam reflexões coletivas, se transformem em problemas individuais, de preferência envolvendo o caráter dos seus integrantes. É típico da esquerda liberal gastar boa parte do seu tempo moralizando os mais diversos temas, assim como perseguindo possíveis desviantes éticos, figuras que falaram ou fizeram algo de errado. A própria cultura do cancelamento é também reflexo da influência de uma esquerda (neo) liberal no cenário político. Um exemplo claro disso é o racismo. Ao invés de pensar o problema como algo complexo, disperso e penetrante, com várias camadas de sentido, o que temos são caçadores que farejam o desvio moral de certas pessoas, concentrando toda a energia na perseguição desses mesmos desviantes, como se o problema fosse simples assim. Quando pensamos no tema do “privilégio branco”, o que passa pela sua cabeça? Membros da esquerda (neo) liberal pensam numa mulher branquinha dondoca que humilhou sua empregada em público. Embora revoltante, isso desvia o foco do problema, já que ele é estrutural, fazendo parte de uma rede complexa de experiências, não importando o caráter ou as motivações individuais. Mesmo se a mulher fosse “do bem”, nobre, maravilhosa, ética, etc, ainda assim o privilégio branco estaria presente. O fato dela ser "má", agressiva, egoísta, não afeta em nada uma análise sociológica, da mesma forma que donos de escravo gentis continuavam sendo donos de escravos durante o período colonial.




REFERÊNCIAS



ANTUNES, Ricardo. Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. A cidadania negada: políticas de exclusão na educação e no trabalho. São Paulo: Cortez, p. 35-48, 2001.

ŽIŽEK, Slajov. Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1991



Referência da imagem:


https://www.mtall.com.br/panfleto-flyer-folder/duvida/

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