Meu texto de hoje é sobre o famoso artigo 10 do “Federalista”, de autoria de James Madison (1751-1836), considerado um dos pais da Constituição norte-americana, de 1787. O Federalista é um compilado de artigos (85 no total) publicados na imprensa de New York, entre 1787 e 1788, escritos também por John Jay e Alexander Hamilton. Madison foi presidente dos EUA. Defensor da Constituição americana, e um dos fundadores do Partido Republicano.
O artigo discute centralmente a questão das facções. Facção é uma reunião de grupos de minorias ou maiorias que tem um interesse ou paixão em comum. Acreditam nos seus direitos ou pontos de vista como os mais corretos. Como evitar as facções? Eliminando-as ou corrigindo seus efeitos?
No primeiro caso há duas saídas: destruir a liberdade essencial à sua própria existência, no caso das facções; ou obrigar a todos a seguir uma única opinião, ou seja, impor uma forma única de pensamento. Quais são os problemas de ambas as soluções? Primeiro, não há política sem liberdade de ação. Segundo, não há uma razão universal, genérica, infalível, inquestionável. A razão e a emoção diferem de pessoa para pessoa. A diversidade é, no fim das contas, algo que temos que contar sempre.
Madison também se refere, ainda sobre o parágrafo acima, na questão da propriedade. A diversidade das faculdades humanas é a origem dos direitos de propriedade. É a causa. Todo governo deve defender a diversidade. Deve também defender o que as pessoas conquistaram, em sua extensão e natureza.
A natureza humana tem em si os germes de facção. Em todo lugar, há pessoas em diferentes atividades e em diferentes combinações de sociedade. E isso gera, também, em toda a parte, animosidades recíprocas: uns querem prevalecer sobre os outros. As inimizades, os combates violentos são efeitos desse caráter bélico.
A maior causa das discórdias está nas propriedades privadas. Aí acontece um fomento maior na formação de facções: a desigual distribuição das propriedades, entre os que não têm e os que têm. Ou animosidades entre os devedores e credores. Ou entre os próprios proprietários. Por isso, todo estado civilizado deve, ao fazer o cálculo com a finalidade de evitar o máximo de confronto, submeter leis gerais aos opostos, aos que defendem suas próprias consciências de facções. Não considerar isto, significa deixar que cada qual seja juiz em causa própria. O que leva, naturalmente, a um estado de guerra instituindo a lei do mais forte.
Não seria possível, pela própria natureza humana, prevenir a causa das facções. É como acabar com o ar que respiramos. A única saída mesmo é diminuir os efeitos. Diminuir os custos. Como fazê-lo? Quando minorias querem defender seus interesses a todo custo, em detrimento do bem público e dos direitos individuais, uma maioria pode barra-las; quando é uma maioria que quer fazer aprovar seus interesses de facção, aí o problema começa a ficar muito sério.
Numa democracia direta, combatida pelos federalistas americanos, em que todo o povo participa de todas as decisões, sempre valerá o poder da maioria demolidora. Não existe defesa de minorias, em hipótese nenhuma, a maioria aprovará suas paixões e interesses comuns como rolo compressor. Igualdade política extrema não daria conta de garantir igualdade de opinião.
Numa república popular, aí sim, representativa, os poderes são delegados a um pequeno grupo escolhido pelo povo. Os eleitos devem agir conforme os negócios gerais, pela vontade pública. É mais provável que isso ocorra, do que quando o povo participa diretamente das decisões.
Outrossim, é sempre possível que os eleitos carreguem o espírito faccioso extremo, em detrimento das liberdades e direitos individuais. Ou podem querer passar projetos obscurantistas. Aqui é necessário calcular uma quantidade adequada de representantes, em pequenas e grandes repúblicas, evitando que um grupo seja muito hegemônico. Para isso, é fundamental a existência de legislaturas locais aos interesses locais, e legislaturas nacionais aos interesses gerais. Eis aí a vantagem de uma União de repúblicas populares federativas: um país que combina estados grandes e pequenos, que salvaguarda interesses locais e nacionais, e diminui os riscos de apetites totalizantes.
A república popular federativa ajusta-se a territórios vastos e populosos, e é mais vantajosa do que um estado pequeno de caráter democrático (na visão clássica das democracias antigas). Também, quanto mais extensa é uma sociedade, maior o número de grupos e interesses, e mais difícil (não impossível) formar um partido ou facção majoritária. Com isso, menor o risco da opressão da maioria sobre as minorias; e menor o risco de aprovação de projetos que os beneficie.
Do que foi dito, ainda há a vantagem das repúblicas maiores sobre as menores, ou da união de repúblicas (o próprio Estados Unidos) sobre os estados que a compõe (na época era apenas 13 estados). O mesmo vale aos condados locais em relação aos estados: qualquer espírito de facção local não terá tanto poder a ponto de imprimir um mesmo pensamento a todo território. As variedades de facções impedem a contaminação geral, seja ela qual for.
E o cenário político atual, em Pindorama? Na estrutura tradicional, do Legislativo, facções ou grupos sempre existirão. Os interesses particulares estarão em choque com outros interesses. Temos uma das maiores populações do mundo (6ª colocada), num vasto território (5º colocado). O conflito é algo positivo, sem dúvida, desde que os políticos eleitos realmente representem a diversidade da nossa vasta sociedade.
No Brasil, ainda há sérios problemas de representação. Mulheres, negros e pobres, por exemplo, têm pouquíssimo espaço nas câmaras e assembleias. Vamos aos fatos.
O resultado nacional das últimas eleições, mostrou que somente 15% de mulheres chegaram ao Congresso. Num ranking de 190 países, o Brasil só aparece na 156ª colocação no número de parlamentares femininas[1].
Um outro estudo feito pela Transparência Partidária e do Observatório do Legislativo brasileiro, no ano passado, mostrou que na Câmara Federal somente 24% da bancada eleita se considera parda ou negra; no Senado, apenas 20%. Em relação somente às mulheres, sobre a sua cor, o estudo mostrou que apenas 2,5% delas se autodeclaravam negras ou pardas; no Senado, apenas 1,2%.[2] Não podemos esquecer que o último levantamento do IBGE, apontou que 55,8% da população brasileira se autodeclarava preta (46,5%) ou parda (9,3%). As mulheres representam também a maioria na sociedade: 51,8%.[3]
Na Bahia, estado mais negro e pardo do Brasil, com cerca de 80,2% de autodeclarados, só temos uma deputada negra eleita em 2018, Olívia Santana. Dos 63 deputados estaduais, só dois se declararam negros, incluindo o candidato a prefeito de Salvador, pastor Isidório.[4]
Em resumo, quando você não tem uma variedade de representantes, numa população tão plural como a brasileira, como esperar que os projetos beneficiem os interesses do maior número possível de eleitores e facções? Em outros termos, num Legislativo sub-representado, em recortes de raça e sexo, por exemplo, como acreditar que exista um sistema político responsivo aos interesses diversos?
É preciso, em primeiro lugar, incentivar, eleição após eleição, um real aumento de candidaturas daqueles historicamente excluídos, se possível como já está sendo feita nas eleições atuais, com as cotas obrigatórias para negros, no financiamento de campanha. Ou na obrigatoriedade de 30% de candidaturas femininas, conforme a Lei 12.034/2009 . Com a emenda constitucional (EC) nº 97/2017, todos os partidos devem respeitar a cota, antes relegada somente às coligações, que, felizmente, foram extintas.
Se queremos uma República Popular representativa mais inclusiva, precisamos colocar todos os setores, facções, grupos, para jogar na política. Sempre com conflito, é claro. É importante nunca esquecer que a política é a arte de resolver os problemas de convivência sem recorrer à violência. Ou a gente agrega mais atores, ou, senão, salvadores da pátria sempre surgirão querendo erigir novos edifícios, sem reparar as falhas, e formando novas exclusões.
Até a próxima!
Link da imagem: https://www.history.com/topics/us-presidents/james-madison
Notas
[1] https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/08/mulheres-sao-15-do-novo-congresso-mas-indice-ainda-e-baixo.htm
[2] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/bancada-negra-no-congresso-e-sub-representada-em-postos-de-comando.shtml
[3] https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html
[4] https://www.metropoles.com/brasil/eleicoes-2018/assembleia-legislativa-da-bahia-elege-a-primeira-mulher-negra