Apesar da separação de Portugal, o Brasil continua colonial desde o dia 7 de setembro de 1822, como se a República nunca tivesse chegado. Lembro que Machado de Assis¹ escreveu que da colônia para a República só a fachada mudou.
Talvez, de fato, a modificação nunca tenha vindo. Primeiramente, o Brasil foi um dos últimos países da América a se separar da Metrópole, ou do seu algoz. Houve guerras dentro do país, uma insurgência contra o sistema, principalmente contra a escravidão que imperava.
Entretanto, não ocorreu uma guerra civil única, como em outros locais. Algo que está interligado a sensação de não patriotismo que possuímos, uma vez que não aconteceu uma vontade coletiva de separação e um sentimento de comunidade, até mesmo porque a maioria dos que aqui viviam foram arrancados de seus lares e possuíam diversas étnicas e línguas, aqui estou falado dos povos oriundos de África e dos povos indígenas. Como se organizar com tanta diferença?
Mas uma história que não nos é contada é que existiram dois brasis, um deles, o do Grão-Pará e Maranhão, no qual englobava o que hoje é o Norte do país. Lá existia uma sociedade autônoma que se recusava a responder a coroa portuguesa. Com o advento da independência, a então capitania foi desfeita, porém foi uma das únicas que lutou contra Portugal, não ganhou pois não possuía armamento o suficiente, tanto em quantidade quanto em potência.
No Grão-Pará e Maranhão se falavam línguas de povos originários de África e da própria América do Sul. Não sendo o Português uma obrigatoriedade para a região, algo que já demostrava uma outra cultura dentro da província e uma possível dignidade dos povos originários, ao menos comparada com as demais localidades do país.
Portanto, o Brasil poderia hoje estar sendo governado pelos povos indígenas e de África. Ser uma república decolonizada, se desde aquele momento histórico esses povos não tivessem sido dizimados e perdido sua dignidade humana.
Atualmente, a tentativa decolonial é precisa e preciosa, pois existe a necessidade de visibilizar esses povos, pelo menos por parte de uma camada da população que apesar de estar em situação de privilégio, pretende ouvir corpos dissidentes e que foram massacrados nesses períodos. ²
No final do século XIX para o começo do século XX, no momento histórico da proclamação da república – aqui estou dando um salto temporal- o Brasil muito se espelhava na França, uma vez que era um dos países que mais exportava cultura para o mundo e sem dúvida um dos mais prestigiados, Portugal era a rebarba.
Fazendo um garimpo literário de obras desse momento histórico ou que falam sobre esse momento histórico, é possível perceber que o uso do Francês é constante para denotar intelectualidade e refinamento por parte de alguns personagens e até do próprio escritor. ³
A onda modernista, em 1922, então, nos alerta para esse momento em que muitos aspectos da nossa cultura -a maioria deles construídos durante o período colonial- refletiam a um outro. Atualmente o nosso espelhamento tem flertado com os E.U.A.
Se a antropofagia, esse ato de comer os saberes e a cultura do europeu e inserir na cultura brasileira, se fazia presente em 1922, o que será de nós em 2022, quando nos sujeitamos as ideologias estadunidenses?
Quantas palavras em inglês estadunidense utilizamos corriqueiramente? Quantos filmes estadunidenses consumimos? De onde vem os nossos heróis da ficção? Quem são os artistas que celebramos? Claro que aqui não pretendo vestir a carapuça de Policarpo Quaresma e nem generalizar, uma vez que vejo muitas pessoas consumindo outros culturas.
Porém, os E.U.A está presente mesmo quando não o queremos consumir, já que o Mcdonald’s é quase onipresente quanto o Facebook e os filmes nos catálogos de streaming.
Pretendo alertar aqui para o fato de dificilmente estarmos inseridos no que se passa no Brasil, no contexto cultural, econômico, político, muito bem colocado por Machado em sua época. Isso pode margear os processos de privatizações e a ascensão de governantes que se disfarçam de Donald Trump dos trópicos.
Para os E.U.A, seremos eternos Zé Cariocas e para o resto no mundo não passaremos de sexo, futebol e carnaval, isso se não nos posicionarmos como brasileiros que possuem seus inteligentes cineastas, literatos, pedagogos, cientistas. Alguns que até são mais valorizados no eixo europeu e estadunidense, o que é irônico, talvez porque antropofagiamos a visão pessimista dos colonizadores e nos deixamos ser dominados.
¹ Livro “Esaú e Jacó”, escrito em 1904 por Machado de Assis.
² A discussão decolonial é muito mais ampla do que isso, aqui trouxe esse exemplo para ilustrar uma das pautas que permeia essa temática.
³ Livros: “Madame Pommery”, escrito em 1919 por Hilário Tácito e “O Xangô de Baker Street”, escrito em 1995 por Jô Soares. Também indico a Sátira seriada, “Filhos da pátria”, produzida e distribuída pela Rede Globo em 2017, atualmente hospedada no streaming Globo Play.
Imagem de capa: Primeiros Sons do Hino da Independência, também conhecida como Hino da Independência. É uma pintura de Augusto Bracet. A data de criação é 1922. Link da imagem: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c0/Dom_Pedro_compondo_hino_da_independencia.jpg>