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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

Você no lugar dos baleiros


* Por João Mendes

Suponho que dentro de um coletivo, seja a viagem longa ou curta, você prefira o silêncio. Poder escolher o que ouvir, admirar a paisagem em sua plena quietude ou então desligar-se do mundo entre as playlists do celular. De todo jeito, a última coisa que parece nos trazer conforto é a voz estridente e esganiçada de um baleiro vendendo seus produtos aos berros.


Eu sei. Talvez, até a pessoa mais paciente possa perder a calmaria ao se desencontrar com o silêncio que tanto esperava. Alguns outros podem até dizer que não se incomodam, que apenas aumentam o volume dos fones e esquecem qualquer outro que possa estar querendo ser ouvido.


De todo jeito, não é confortável.


Por isso, desejo propor um exercício de empatia. Por uma única vez, se ponha no lugar daquele que grita ao invés daquele está sentado no banco. No começo, pode ser difícil. O baleiro tem uma voz alta, que se propaga com facilidade, que tem ritmo! Consegue dizer tantas coisas em tão pouco tempo.


É quase um locutor de rádio. Não, voz de rádio não, voz de baleiro! Talvez tenha nascido assim, com esse jeito, essa voz, essa mania de entrar nos coletivos sem qualquer inibição. Mas, talvez, se deixar de enxergar o baleiro unicamente como a imagem daquele que quebra o silêncio e por sobre ele a real figura humana, digna de inseguranças, talvez comece a estabelecer um novo diálogo.


Afinal, será que um baleiro pode ser tímido e ainda assim propagar a voz pela sobrevivência? Por que não? Por que não alguém exatamente como você?


Então, se colocando no lugar do baleiro, ponha-se no ponto de ônibus. Tantos outros como você se entreolhando, fazendo a disputa de quem irá subir primeiro. Pode ser você o primeiro a sinalizar com a mão, mas isso não indica que o ônibus fará a parada. Pode ser que feche a porta diante do rosto ou espere você se aproximar e arranque.


Existem tantas outras variáveis que desprezam o seu único intuito de trabalhar. Afinal, você não está pedindo uma viagem de graça, esmola, você está pedindo apenas o direito de exercer o seu trabalho.


Continuando, você entra no ônibus, já perdeu o fôlego pela corrida. Sente os braços pesando pela mercadoria, não pode estar ofegante ou sequer derrubar aquilo que carrega entre os dedos. Quando enfim se põe de pé no corredor, alguns te olham com desconfiança, outros sequer levantam o rosto. Metade te ignora e a outra metade parece te ver do topo, encarando-o como faria um rei no alto da corte.


Você tenta falar, a voz engasga, o som não atinge sequer meio palmo frente ao seu rosto. Talvez, depois de uma ou duas tentativas, você consiga atingir os ouvidos de quem não quer sua voz. O balanço do ônibus pode te jogar de um lado para o outro, sacudir, mas ainda assim você deve se manter de pé, com a voz propagando, repetindo os preços e produtos ao menos umas cinquenta vezes ou mais.


Talvez uma pessoa compre. Sua garganta seca pode ter valido menos de dois reais, de onde você só vai conseguir tirar oitenta centavos. Na sorte, duas ou três pessoas comprarão. Mas, pensando bem, quem nunca viu um baleiro descer do ônibus sem vender ao menos uma única mercadoria?


Talvez o exercício já esteja cansativo por si só, mas o que acontece ao pensar que aquele foi só o primeiro ônibus dos outros quarenta que você vai pegar até o fim do dia? Quantas pessoas não desejarão que você simplesmente cale a boca? Que fique quieto e não atrapalhe a viagem?


Talvez assim, se nos enxergarmos refletidos naquela figura de pé, que passará por ali em dois minutos, comecemos a repensar como tratamos a quebra do silêncio. Quem está de pé, projetando a voz, pode ser tão humano quanto você. E é. Nesse caso, um pouco de atenção ou falta de julgamento, não fará mal. Responda um comprimento, não deixe que um único bom dia fique pairando no ar. Sorria, se achar necessário. Incentive. Afinal, não é só das compras que podemos estimular o trabalho do outro, que pode ser tão inseguro quanto nós mesmos, engasgando a voz pelo sustento.



* João Mendes. Escritor baiano. Estudante de cinema e teatro. Autor de "Aos trilhos que me atravessam".

Imagem tirada pela próprio autor.


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