Porque o samba nasceu lá na Bahia E se hoje ele é branco na poesia Se hoje ele é branco na poesia Ele é negro demais no coração
(Samba da Benção – Vinícius de Moraes)
Eu sou o samba Sou natural daqui do Rio de Janeiro Sou eu quem levo a alegria Para milhões De corações brasileiros
(A Voz do Morro – Zé Keti)
Se procurarmos referências do samba e seus primórdios, vamos encontrar informações bastantes desencontradas. “O samba nasceu na Bahia no século XIX”. “Foi levado para a Bahia pelos escravos”. “O samba foi criado no Brasil”. “O samba é um gênero musical e dança com origem na cidade do Rio de Janeiro”. Haja controvérsia. Como paramos essas “cadeiras” que mexem pra lá, mexem pra cá, mexem com o juízo do homem que quer pesquisar?
Em 1892 chegou ao Rio de Janeiro um pernambucano radicado na Bahia chamado Hilário Jovino. Farrista e boêmio, começou a frequentar uma comunidade negra que ficou conhecida como “Pequena África”. Após integrar um Terno de Reis, resolveu estender aquela manifestação do ciclo natalino para o carnaval, como era comum na Bahia. O grupo ganhou percussão semelhante à sonoridade africana, com pandeiros e ganzás, além de porta-bandeira e baliza (o “ancestral” do mestre-sala), comuns na Bahia, mas raro no Rio daqueles tempos. Sonoridade africana, carnaval, pandeiro... Vão guardando as informações.
Jovino brigou com membros da agremiação e fugiu com a esposa de um dos seus sócios, que entregou a responsabilidade do comando daquele rancho carnavalesco a uma cozinheira chamada Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, natural de Santo Amaro da Purificação, Bahia. Era líder comunitária junto a outras “tias”, a maioria baianas. As festas nas residências dessas mulheres eram animadas com muita batucada, oriunda da terra delas. Nesse ambiente, três rapazes saíram dali para tornarem-se os primeiros nomes do samba carioca: Sinhô, Donga, e João da Baiana, levando para toda cidade aquele timbre que ouviam nos quintais. Os dois últimos filhos de baianas. Donga teria gravado o primeiro samba, “Pelo Telefone” *, em 1917 (foi acusado de plágio, mas isso é uma outra história..). Perambulando pelas ruas da cidade, em noitadas e bebedeiras, topavam com outros figurantes mais jovens, que iriam entrar pra história da música e do samba, como Pixinguinha, Cartola, e Noel Rosa.
A rivalidade entre Rio e Bahia no “controle” do gênero musical que surgia foi acirrada. Sinhô compôs “Quem são eles?” que dizia “A Bahia é terra boa / ela lá e eu aqui”. A comunidade baiana tomou a letra como insulto. Pra piorar, a segunda parte dizia “Não precisa pedir que eu vou dar / Dinheiro não tenho, mas vou roubar”. Foi interpretada como desconfiança da honestidade dos baianos. Em verdade, a letra fazia menção a um empréstimo do Banco do Brasil à prefeitura de Salvador, que estava em colapso econômico. Mas entenderam de outra forma. Porém, Sinhô continua a provocação na música “Fala, meu Louro”: “A Bahia não dá mais coco / pra botar na tapioca / pra fazer o bom mingau / pra embrulhar o carioca”. Hilário Jovino respondeu com “Entregue o samba a seus donos”: “Mandioca mais se presta / muito mais que a tapioca / na Bahia não tem mais coco? / é plágio de carioca!”
Ganhando novos instrumentos, roupagens, adeptos, e melodias, aquele som dos terreiros se moldava à medida que o cenário urbano avançava. Com inserção de tamborins e repiques, o ritmo estava em plena metamorfose em fins da década de 1920, quando grupos resolveram realizar concursos de samba. Surgiram entidades nos morros do Estácio, Mangueira, Oswaldo Cruz (Portela)... Daí se desenvolveu as famosas escolas de samba do carnaval carioca. Esses músicos reconheceram a gênese de toda aquela pandega: criaram a “ala das baianas”, homenageando a primeira geração de indivíduos da Boa Terra, cujos filhos levaram a batucada para a rua no período de Momo 40 anos atrás.
Na Bahia, os cantos de trabalho na lavoura escravagista se estenderam para celebrações religiosas, cultos a orixás, e batucadas ao sabor da culinária afro-brasileira, principalmente na região do Recôncavo. Nas danças, rodas, palmas, violas, pandeiros, prato-e-faca, muito gingado. É o samba-de-roda, uma das diversas expressões culturais do Estado. E no embarque para o Rio de Janeiro, as moças que viraram “tias” levavam no quadril suas heranças.
O samba na Bahia não se urbanizou tanto como no Rio. Muitos nomes embarcaram para a então capital federal. Xisto Bahia, Assis Valente, e Dorival Caymmi foram alguns deles. Caymmi, que cantou que o samba da terra dele “deixa a gente mole / quando se canta todo mundo bole, imortalizou o ditado mais sambista do Brasil: “quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça, ou doente do pé”. As baianas levaram o samba, mas Caymmi levou a Bahia inteira para o Rio, chamando atenção de Carmem Miranda, que gravou “O que é que a baiana tem?” e “Você já foi a Bahia?”. Carmem estilizou o perfil da baiana, levando para os Estados Unidos o ritmo, se apresentando para o presidente Roosevelt em plena Casa Branca. Selando a política pós-guerra entre Brasil, EUA, e México, foi lançado o filme “Você já foi à Bahia?”, mostrando animações de Salvador. A representação internacional do samba, portanto, coube à Bahia. Os anos avançam, surgem nomes lá e cá, e muita gente perguntando “é baiano ou carioca?”
Não há dúvidas que o samba se estruturou no Rio de Janeiro, gerou “primos” como o chorinho, a gafieira, samba-enredo, sambalanço e outros. O carioca personificou o morro como matriz de clássicos do gênero, colocou rodas de bambas em partido alto. Sim, é a voz do morro, como cantou Zé Keti. Porém, está na Bahia um samba mais “primitivo”, com batidas secas, canto coletivo, espalmado, e rural, ligado às africanidades. É negro demais no coração, como compôs Vinícius de Moraes. Uma linha tênue divide os dois estados, quebrando as “cadeiras” pra lá e pra cá.
Fui testemunha ocular de um encontro histórico entre membros da Irmandade da Boa Morte – entidade de mulheres religiosas da cidade de Cachoeira, Bahia – e a Velha Guarda da Mangueira, nos fundos do Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia, na Rua do Sodré, Centro de Salvador, num sábado ensolarado, com vistas pra Baía de Todos os Santos, aos goles de cerveja e garfadas no caruru. Em uma roda dessas, você discute quem é o pai do bebê?
No Rio ou na Bahia, nos morros ou nos campos, a tristeza é senhora. O samba sempre acompanhou a mazela de seus precursores. A lágrima clara continua rolando pela pele escura. Desde que o samba é samba, é assim.
*A música teve algumas versões. A conhecida, fala de um policial que indica, pelo telefone, haver uma jogatina na Praça Onze, mostrando conivência com contravenções. Este, que teria sido o primeiro samba, prova desde já a corrupção dos agentes públicos. Nada mais brasileiro! Viva o samba!!
FONTE:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/PatImDos_SambaRodaReconcavoBaiano_m.pdf
https://daniquedisse.com.br/2017/08/disney-friday-dqd-voce-ja-foi-a-bahia.html
NETO, Lira. Uma história do samba. Companhia das Letras, Rio de Janeiro: 2017, 376 pag.
Fonte das imagens: Catraca Livre e Toda Matéria.