O Bolsonarista é um bicho esquisito, como vocês sabem, principalmente quando o assunto é Ciência. Todo mundo observou, nos últimos meses, o desejo desesperado dessa criatura pela famosa cloroquina, medicamento suspeito e sem resultados claros e confiáveis, a não ser testes pontuais. Diante dessa busca alucinada, e irresponsável, gerando não apenas escassez de certos medicamentos, mas efeitos colaterais problemáticos, o Conselho Nacional de Saúde, ou seja, o lado científico dessa história toda, defendeu um discurso de prudência. Em sua mais recente recomendação, no dia 22 de maio, eles disseram:
Considerando que o momento excepcional provocado pela pandemia desencadeada pelo vírus SARS-Cov-2, COVID-19, não pode significar que a racionalidade deva ser abandonada nem que a população deva ser exposta a condições de maior vulnerabilidade (Grifo meu).
Nós, estudantes de esquerda, usamos esse mesmo argumento contra os Bolsonaristas, criaturas que odiamos com cada fibra do nosso corpo. Apesar dessa resistência visceral aos reacionários, desse ódio que ferve nosso sangue em altas temperaturas, nós temos coisas em comum com esse público. Não acredita? Então vamos lá!!!
11 de março de 2011... esse foi o momento que pisei pela primeira vez no campus de São Lázaro, local da famosa FFCH (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas). Depois de algumas aulas, além de várias conversas e eventos, eu percebi algo de curioso, principalmente porque sempre trabalhei com abordagens mais teóricas, muitas delas na fronteira da própria filosofia. Por conta do “materialismo” que corre em nossas veias, um tipo de discurso insistente era apresentado nos corredores, nas salas e nos vários encontros acadêmicos:
As pessoas lá fora estão morrendo, estão precisando de nós!!! Não podemos desperdiçar nosso tempo com debate, publicações, congressos. Precisamos agir com urgência!!! Precisamos sair de nossa torre de marfim!!! Precisamos ir até as ruas, onde povo pede respostas!!!
Tanto os Bolsonaristas, quanto certos estudantes de esquerda, não entendem que a ciência é feita com calma, sem pressa, principalmente porque ninguém lida com verdades óbvias, mas com uma rede de testes, encontros e eventos. O mesmo aconteceu com a onda do “antifascismo” que circulou pelo Facebook, com direito até a um layout personalizado oferecido pela plataforma, caso você quisesse mostrar ao mundo todo o seu corpo indignado. Essa foi nossa mais recente cloroquina. Não apenas foi usada por qualquer um, sem prescrição, mas também de um jeito apressado. Enquanto alguns sociólogos, como eu, pediam calma, cuidado, e um pouco mais de tempo nas análises e conclusões, outros diziam o contrário:
Não temos tempo!!! Precisamos agir imediatamente, já que as pessoas lá fora estão morrendo, estão sendo oprimidas, além de nossa democracia estar em risco. Lamento, mas precisamos agir agora!!!!
Qual a diferença dessa retórica e aquela da criatura Bolsonarista? NENHUMA. As duas compartilham daquilo que Isabelle Stengers chamou de ciência fast food. Na tentativa de atender uma demanda imediata de um cliente, o cientista se apressa para entregar o pedido, não importando as consequências ou as simplificações no processo de feitura do “alimento”. Stengers propõe, ao contrário, a defesa do que chamou de Slow Science (Ciência Lenta), ou seja, uma forma de fazer ciência que entende o percurso científico como uma série complexa de negociações, envolvendo uma trajetória que não pode ser simplificada, por mais sedutor que isso pareça. Claro que esse desejo por simplificação nada tem a ver com maldade, ou ignorância, sendo reflexo de um desespero prático, afinal as pessoas lá fora estão realmente sofrendo. O sofrimento delas não é uma ilusão, da mesma forma que o desespero do Bolsonarista. Todos são capturados pela mesma rede de contingências, por um mesmo sentimento de abandono, de incerteza, o que muitas vezes despenca em atitudes desesperadas. Embora reconheça a importância dessa demanda imediata do povo, já que eles sentem na pele discriminações, violências e mortes, as ciências sociais não podem simplificar, ainda que queiram, seus processos de análise e suas conclusões. “Bolsonaro e seus defensores são fascistas?”, pergunta o povo ansioso por uma resposta clara e funcional. “Calma”, diz o cientista. “Não é tão simples assim”. “A vitória de Bolsonaro foi reflexo de um planejamento secreto entre os setores reacionários e conservadores?”, pergunta o povo. “Calma”, diz o cientista. “Não é tão simples assim”. “O copo de leite que Bolsonaro bebeu em uma transmissão ao vivo era um símbolo facista?”, pergunta mais uma vez o povo. “Calma”, diz o cientista. “Não é tão simples assim”.
Conceitos como ESTRUTURA, SISTEMA, CAPITALISMO, CLASSE, ou seja, conceitos mais funcionais e práticos, mobilizados por indivíduos em situações de risco e violência, são facilmente convertidos em cloroquina, sendo usados com muita pressa e irresponsabilidade, embora eu compreenda os motivos nos bastidores. O meu argumento, sem dúvida, é a favor de uma Slow Science (ciência lenta), mas o principal ponto desse ensaio é a incoerência de algumas atitudes que encontrei pelo caminho. Se nós temos o direito de apressar as ciências, desconsiderando todo um processo complexo de testes, debates e análises, se consideramos tudo isso um mero exercício teórico, abstrato e inútil, por que o Bolsonarista deve ser criticado por uma atitude que fazemos há tanto tempo? Se o critério é a vida prática, e sua urgência, se o critério é o desespero das pessoas, e sua necessidade por respostas e ações imediatas, por que criticamos o Bolsonarista?
Infelizmente, nas ciências sociais e na filosofia, nós temos nossas próprias cloroquinas, conceitos que são oferecidos ao público com muita pressa, urgência, quase como se estivessem em um “fast food” conceitual. Basta aproximar seu carro do guichê sociológico, fazer seu pedido e imediatamente vamos matar sua fome.
Cientista Social (Filósofo): “Olá, como posso ajudá-lo”
Cliente 1: “Olá, boa tarde. Gostaria de dois conceitos de FASCISMO, acompanhado com um milkshake de ideologia e cookies no formato de lutas de classe, por favor.”
Cliente 2: “Olá, boa tarde. Quero duas estruturas e dois sistemas, mas sem cebola”
Cientista Social (Filósofo): “Senhores... estamos passando por uma etapa de transformação em nossa cozinha, trazendo comidas mais saudáveis e com um preparo especial. Por conta disso, seus pedidos vão exigir um pouco mais de tempo no preparo”
Cliente: “Que absurdo!!! Pode cancelar meu pedido!!! Não tenho tempo!!!! Crianças, vamos no Burger King”
Claro que precisamos criticar o Bolsonarista, mas que tal ir um pouco além? Que tal olhar em direção ao nosso próprio umbigo, na própria forma como fazemos nossa ciência? Precisamos, sim, defender a “Slow Science”, a ciência da cautela, dos testes, do cuidado, ainda que essa defesa comprometa nossa própria fome de ação e de resistência. Se o universo científico precisa de tempo, e é essa a bandeira que esquerdistas como eu defendem, precisamos ir até as últimas consequências. Não adianta apenas defender a “Slow Science” porque isso incomoda o Bolsonarista, como se fosse uma atitude ressentida e incoerente. Precisamos defender essa abordagem científica, porque é isso que a ciência faz. Ela não lida com verdades, certezas, nem nada do tipo. Ela lida com experiencia, com debates, testes, erros, falhas, além de vários outros malabarismos metodológicos, assim como uma rede criativa de milhões de pesquisadores, artigos, aulas e congressos.
Não entendemos ainda que o problema não é o Bolsonarista, mas essa visão distorcida e simplificada do espaço científico, essa ideia de que a ciência é uma ferramenta conveniente de grupos que pedem por ajuda, sendo nada mais do que um simples produto flexível. Lamento desapontar muitos lá fora, mas o espaço científico, seja ele de humanas, exatas ou biológicas, não segue a sua expectativa, o que você quer, quando você quer, mas tem um ritmo próprio. Se você precisa de respostas rápidas e práticas, se não tem tempo a perder, existem outros espaços mais adequados, como a igreja, os sindicatos, as associações de bairro, os centros acadêmicos. Todas essas esferas funcionam de uma forma pragmática, numa busca por definições claras e eficientes. Apesar da importância desse traço pragmático, as ciências não funcionam assim, já que elas têm a própria temporalidade, que não necessariamente é a temporariedade do seu desejo, daquilo que você precisa ouvir ou fazer. Eu sei que essas palavras parecem frustrantes, eu sei que você coloca muita fé nas ciências sociais e na filosofia, até por conta da legitimidade que elas oferecem ao que você faz e fala; eu sei que não é fácil o mundo lá fora, eu sei o quanto seu corpo é dilacerado e cheio de cicatrizes, mas, ainda assim, precisamos ter cuidado com o que falamos, além das classificações e conceitos que saem de nossas bocas.
Sem dúvida, é possível que Bolsonaro e seu governo sejam fascistas, da mesma maneira que a cloroquina pode ser confirmada como um remédio válido no tratamento da Covid-19, mas essa conclusão apenas brota no final de uma série cuidadosa de eventos e debates, e não como resultado de uma atitude apressada, reflexo de ódio e ressentimento. Precisamos criticar não apenas a criatura bolsonarista, mas essa mania de entender a ciência como um parque de diversão, como um espaço conveniente onde meu desejo é correspondido, onde minhas frustrações são justificadas, onde meus inimigos são combatidos. Precisamos abandonar completamente essa noção gordurosa de ciência, esse fast food científico que oferecem por aí. Talvez uma comida mais saudável possa ser mais interessante, embora seja necessário esperar mais, ter mais cuidado no preparo e na apresentação do nosso prato. Precisamos, portanto, de uma nova gastronomia sociológica e filosófica. Precisamos de melhores chefes de cozinha, indivíduos preocupados não apenas em matar a fome dos clientes, mas também preocupados em oferecer produtos de qualidade e mais saudáveis.
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https://www.universia.net/br/actualidad/orientacao-academica/carreiras-em-alta-faculdade-gastronomia-1166165.html