Ai,ai,tem feitiço tem! O erotismo na música brasileira.
- Carlos Henrique Cardoso
- 24 de jul. de 2020
- 5 min de leitura

Muita gente reclama das baixarias contidas nas músicas atuais, geralmente escutadas nas alturas. Provavelmente o barulho é mais angustiante, porém, sempre sobra uma crítica horrorizada ao teor infame das letras. Mas isso é algo contemporâneo? O poeta baiano Gregório de Matos Guerra, o “Boca do Inferno”, já dava a deixa de que não há nada de novo no fronte: “de dois ff se compõe essa cidade a meu ver: um é furtar, outro foder”. Podemos até dizer que Gregório não era só indecente, mas a questão aqui não é essa. O palavreado chulo, o duplo sentido, a picardia e o escracho sempre nos rondaram. Esse artigo será mais um mostruário que uma análise elaborada.
Vamos fazer um recorte a partir da primeira década do século XX, quando a Casa Edison, no Rio de Janeiro, lançou os primeiros LP’s. O intérprete Mario Pinheiro dava o tom do esculacho, com composições tais quais “Pela Porta de Detrás” e “Boceta de Rapé”, gravadas entre 1905 e 1908. A primeira canção fala da relação de algumas pessoas. Em certa altura ele fala de “um velho valente e capaz”
De fazer-me em mil pedaços
De evitar nossos abraços
Pela porta de detrás
A segunda, fala de um recipiente onde uma senhora guarda seu rapé. No entanto, é nítido o vitupério com o órgão sexual feminino.
A coisa nesse mundo por qual tenho mais xodó
É tomar uma pitada...Daonde, seu compadre? Ora, ora ora
Da boceta de vovó!
Quando tiro assim com o dedo
Da boceta de vovó
Fico triste, fico mudo
Fico mesmo que faz dó
Quando aparece raspada
Ahahahahaha...o que aparece raspada, seu compadre?
A boceta de vovó!
Pra terem uma ideia, não encontrei entre as letras de Mário Pinheiro nenhuma dessas duas. Tive que transcrever, com alguma sofreguidão, essas passagens (a qualidade da produção deixa a desejar). Presumo algum tipo de censura. Agora imaginem esse palavreado todo na boca de algum pagodeiro...
Os versos daquela época continuaram em polvorosa. Chiquinha Gonzaga gravou em 1908 uma cançoneta chamada “Corta Jaca”. A produção é instrumental, mas o “corta jaca” se tornou uma dança pra lá de sensual, assim como o Maxixe, um ritmo sincopado bem lascivo. Surgiu uma letra louvando o ato de “cortar jaca”, uma travessura que abarca a todas classes sociais e faixas etárias. Todo mundo “cortando jaca”.
Neste mundo de misérias Quem impera É quem é mais folgazão É quem sabe cortar jaca Nos requebros De suprema, perfeição, perfeição
Ai, ai, como é bom dançar, ai! Corta-jaca assim, assim, assim Mexe com o pé! Ai, ai, tem feitiço tem, ai! Corta meu benzinho assim, assim!
Esta dança é buliçosa Tão dengosa Que todos querem dançar Não há ricas baronesas Nem marquesas Que não saibam requebrar, requebrar
Este passo tem feitiço Tal ouriço Faz qualquer homem coió Não há velho carrancudo Nem sisudo Que não caia em trololó, trololó
A jaca simboliza uma vulva (precisaria mesmo dizer?). A faca... vocês sabem o que é. E se imaginarmos a mímica manual de alguém cortando uma jaca, fica evidente o gestual de uma cópula.
Francisco Alves, o “Rei Da Voz”, famoso por suas lindas interpretações, gravou uma canção, em 1928, que também não aparece no seu repertório em sites especializados. “Lulu, acende a luz”, é um hilário conto de uma mulher inocente que havia sido noiva de “um preto autêntico”, mas se casou com o tal Lulu do título. Na noite de núpcias, quando ele apagou a luz, a mulher passou a murmurar e “soluçar devagarinho” o que o deixou desentendido. Após nove meses, a mulher pare – para a surpresa de Lulu – “um negrinho”. Daí ele percebe que a culpa foi dele, pois a moça o havia prevenido. E o refrão é cantado com a voz de Alves cheia de dengo.
Lulu... acende a luz, Biju
Assim depressa, ô cruz
Não quero esse “brinquedo”
Que escuridão, Jesus!
Lulu...eu tenho medo
Acende a luz!
Os reverenciados artistas da MPB e do Rock também não deixaram barato, entretanto, tinham malícia suficiente pra coisa passar despercebida. Rita Lee, sempre atrevida, também colocou tempero no descaramento. Muitas de suas músicas são brindes e odes ao coito. A música “Flagra” mostra uma sutileza genial.
No escurinho do cinema
Chupando drops de anis
Longe de qualquer problema
Perto de um final feliz
O drops de anis tem formato cilíndrico (fálico)... Pra quem está com tal doce na boca, o que seria um “final feliz”?????
A Legião Urbana também teria deixado uma mensagem velada na música “Daniel na Cova dos Leões”, que trataria de sexo oral, segundo algumas línguas.
Aquele gosto amargo do seu corpo
Ficou na minha boca por mais tempo
De amargo então, salgado ficou doce...
Cada qual no seu quadrado artístico, nosso rico cancioneiro continua sempre aprontando muitas e boas. O forró, com seu bate-coxa, arrematou muitos versos de duplo sentido. Genival Lacerda, Clemilda (“ele só vive batendo em Tonheta, batendo em Tonheta, batendo em Tonheta...”) e Sandro Becker foram alguns dos artistas que botaram todo mundo pra dançar, rir e se excitar ao mesmo tempo. Esse último gravou a impagável “Tico-Tico”, um gato que tinha um grande defeito: não parava de miar.
Tico mia na sala
Tico mia no chão
Tico mia no tapete
Tico mia no fogão
Tico mia no almoço
Tico mia no jantar
Tico mia no quarto
Toda hora sem parar
O pagode da Bahia também teve das suas. “Toma Vara” (“toma vara, toma vara, bem devagarinho / Toma vara, toma vara pra pegar peixinho”) e “Melô do Picolé” (“Vem chupar que tá durinho, vem chupar que é bom / vem, vem, vem tá geladinho”) foram algumas que muita gente torceu o nariz. Mas foi o funk carioca que revolucionou. Não pelo duplo sentido de sempre, mas no escracho explicito. Com esse ritmo, as mulheres ganharam voz ativa na arte de esculhambar, colocando o sexo feminino na linha de frente do esculacho com nomes como Valeska Popozuda, Deise Tigrona, e Tati Quebra-Barraco que cantou a jocosa “Fogão Dako”.
Entrei numa loja
Estava em liquidação
Queima de estoque
Fogão na promoção
Escolhi da marca Dako
Porque Dako é bom!
Dako é bom
Dako é bom
Dako é bom
Calma, minha gente
É só a marca do fogão!
Não preciso nem dizer que a palavra “Dako”, na música, tem a pronúncia com a segunda sílaba bem acentuada...
Importante dizer que essas canções seguem uma linhagem da irreverência, de expressão de sentimentos e sentidos que seguem o fluxo do estardalhaço. A arte cede espaço a diversas manifestações, nenhuma novidade nisso, cada um passando seu recado de acordo com suas capacidades. Acontece que costumamos glorificar o passado, como se o presente não tivesse nenhuma ligação com o pretérito, ou não beba de sua fonte constantemente. Talvez as primeiras canções registradas no início do século passado caiam na denominação do “cult”, assim como as composições de talentos reconhecidos. A nostalgia sempre vem à baila quando queremos exorcizar um presente que consideramos indigno. Do “Corta Jaca” ao Arrocha ou funk, a balbúrdia tem seu lugar. O espaço está garantido. A luxúria está no ar.
FONTE:
http://dicionariompb.com.br/corta-jaca/dados-artisticos
IMAGEM: Facebook.