Democracia e cultura política. O que tem a ver com você?
- Alan Rangel
- 13 de jul. de 2020
- 6 min de leitura

Política, antipolítica e não-política
A política baseia-se na pluralidade dos homens[1]. Convivência entre os diferentes com o objetivo de tratar de questões em comum. Diferentes mais iguais em relação ao uso da fala.
O humano por natureza é apolítico. Torna-se político quando entra em relação ou ação com outros para discutir problemas que atingem a todos. Uma conversa mútua e o convencimento recíproco; assuntos que dizem respeito à melhor forma de convivência. Em tempos normais, é na esfera política que existe algum grau de liberdade, pois, pensar além de si é ser livre das amarras naturais.
Não há liberdade fora da política. Liberdade é algo político: é o próprio sentido da política. É o convívio no mundo. É um esforço para estar no mundo. É viver-num-mundo-real e o falar-sobre-ele-com-outros. Nas palavras de Hannah Arendt, é liberdade:
[...] entendida negativamente como o não-ser-dominado e não-dominar, e positivamente como um espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus iguais não existe liberdade alguma e por isso aquele que domina outros e, por conseguinte, é diferente dos outros em princípio, é mais feliz e digno de inveja que aqueles a quem ele domina, mas não é mais livre em coisa alguma”.[2]
A antipolítica e a não-política é, obviamente, o contrário da política. É a não ação na esfera pública. É despreocupação com as questões da sociedade. É atomismo social. É centralidade do consumo. Atualmente, tudo isso faz parte da não-política.
A antipolítica é o desprezo ao diálogo. Desprezo por quem pensa diferente. Desejo irrefreável de resolver tudo pela força. Pela porrada. Antípoda ao diálogo. O antipolítico quer solucionar os problemas do mundo, ou dele mesmo, passando por cima da pluralidade. Em geral, é mais dotado de emoção do que de razão.
Democracia, República e Liberalismo
Quando falamos em Democracia, devemos entendê-la como um regime que pauta por inclusão. Um fator fundamental. A soberania popular é a inclusão do maior número possível de cidadãos – governo da maioria - no guarda-chuva da participação/igualdade. Quanto mais pessoas forem incluídas, supostamente mais democrática é uma sociedade. A Democracia é sempre um processo, porquanto é inconclusiva. É um regime que se apoia na tentativa de atender demandas ou desejos infindáveis por igualdade. Sempre haverá Estados mais democráticos que outros. A Democracia ideal (prescritiva e mais radicalizada) é quando direitos sociais, civis e políticos sejam iguais a todos, de forma realmente efetiva. Mas mesmo ela sozinha, sem freios, na sua acepção prescritiva, pode levar à anarquia.
A República é respeito, zelo ou amor à coisa pública como princípio, tal como descreveu Montesquieu, em O Espírito das Leis. Respeito às instituições formais que fazem parte do Estado de direito, no qual governantes e governados estão sujeitos à lei. O público vem antes do privado. República é a supremacia do bem comum sobre o desejo particular. É uma qualidade moral de aucontenção ou educação de desejos/apetites[3]. Ela pode ser democrática ou antidemocrática (ditadura militar, aristocracia, por exemplo). Ela tem mais a ver com deveres do que com direitos.
Liberalismo é sempre mais complexo de definir. Vamos pelo caminho ético. O liberalismo preza pela defesa do indivíduo, como cerne nuclear. Na sua essência, a liberdade individual deve ser respeitada. Ainda, no ethos liberal, o indivíduo vem antes do social. Isso não quer dizer que o coletivo seja desprezível. Pelo contrário. Na esfera social, a liberdade é fazer tudo que a lei permite. Se um indivíduo ameaça a existência alheia, está automaticamente passando do limite da sua liberdade prescrita na lei. Logo deve ser combatido. O objetivo é salvar a existência ou a liberdade dos outros. O liberalismo rechaça também o abuso de poder e autoridade. Por isso é fundamental pesos e contrapesos. Zela pela divisão de poderes no Estado, a fim de impedir despotismos de todo tipo.
Democracia, liberalismo e República juntos formam um arcabouço institucional e constitucional, o chamado Estado Democrático de Direito, que resguarda garantias fundamentais (vida, segurança, bens, liberdade, igualdade) no âmbito jurídico. Complementando, democracia liberal representativa não é o direito ou governo da maioria, como apontam alguns demagogos ou ignorantes; é a defesa do indivíduo, independentemente da situação em que esteja. Moralmente falando, é a defesa da dignidade da pessoa humana (todos os humanos). Dignidade do sujeito como fim em si mesmo. Um princípio legado pela tradição ocidental.
Cultura Política
No nível mais microssocial, e da subjetividade, podemos falar de cultura política. O foco aqui é como os atores sociais interagem, interpretam, percebem e avaliam as práticas comuns. Devemos olhar os aspectos subjetivos da orientação política. Como eles interpretam determinados valores? Como pensam, sentem e agem? É suficiente existir leis e normas para que os indivíduos ajam conforme o esperado?
Cultura política democrática é quando as pessoas conduzem sua vida baseada nos valores que estão presentes nas dimensões formais do referido regime político. São normas não escritas.
“A noção de cultura política refere-se ao conjunto de atitudes, crenças e sentimentos que dão ordem e significado a um processo político, pondo em evidência as regras e pressupostos nos quais se baseia o comportamento de seus atores”[4]
Democracia para ser realmente longeva, precisa que os cidadãos – governantes e governados - sejam democráticos. Caso contrário, haverá sempre risco de os próprios cidadãos rejeitarem a formalidade democrática - optando pela ruptura institucional - e escolherem a opção autoritária. Por quê? Por acreditarem que seja a forma mais fácil e rápida de solucionar os problemas de convivência social. Não à toa, temos políticos, eleitos pelo método democrático, que são descrentes da própria forma de governo (vide os vários vereadores, deputados, senadores e o próprio presidente do Brasil). A não crença e a falta de ritualismo dos valores democráticos e liberais leva à crença em saídas autoritárias.
Impedimentos para uma cultura política democrática
No Brasil, vivemos uma Democracia inercial[5]: inadequação entre o formal e informal (comportamentos). Há uma incongruência que leva sempre à instabilidades devido à baixa legitimidade - um déficit democrático - das instâncias formais, por exemplo, o Legislativo, Executivo, Judiciário.
O déficit democrático está também associado a falta de cidadania. No sentido de Alexis Tocqueville, autor de Da Democracia na América, a apatia política contribui para a não-política. A falta de ênfase na organização dos atores sociais, pelo não associativismo civil, é um atrativo à implantação de governos autocráticos e, logo, pela perpetuação de práticas autoritárias. Uma democracia liberal não pode sobreviver por muito tempo se a vida privada prevalecer sempre. Daí não desprezar a moral ou a virtude republicana. Em outros termos, a continuidade de uma sociedade democrática só será possível quando os cidadãos se sentirem responsáveis pelos problemas públicos diários. A negligência e a falta de senso de responsabilidade pública enfraquecem os valores democráticos/liberais.
Por isso, é fundamental que a Democracia exceda o voto: ela precisa ser mais participativa. Os direitos políticos básicos, votar e ser votado, são insuficientes para insuflar um espírito prático de cultura democrática duradoura.
Também não é suficiente direitos sociais instituídos, pois governos autoritários também trabalham em cima de políticas sociais – populismo distributivista[6]. Um ponto importante: ascensão social e material não é o mesmo que ascensão de um espírito democrático/liberal/republicano. Absolutamente. Um certo desejo de consumo também é produto do capitalismo: incentivando um certo individualismo na lógica de uma cultura consumista. Não cria uma ação coletiva. O cidadão não desenvolve o hábito de deveres cívicos. Pauta-se por direitos – o direito a consumir - e pedirá sempre isso do Estado, até que seja reorientado a mudar suas práticas viciadas. E esse vicio é o que nos acomete em nossa estadania histórica.[7]
Sem a crença nas instituições não há construção sólida de uma cultura democrática-liberal. Fora da política, como aqui definimos no inicio do texto, o que resta é a lei do mais forte. Cedo ou tarde, reinará a barbárie.
Link da imagem: http://cocalcomunitario.blogspot.com/2014/05/opiniao-violencia-uma-sociedade-de.html
Notas
[1] ARENDT, Hannah. O Que é Política? Trad. Reinaldo Guarany. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
[2] ARENDT, Hannah. O Que é Política? Trad. Reinaldo Guarany. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p.18, 2002.
[3] RIBEIRO, Renato Janine. Democracia versus República. In: Newton Bignotto (Org.) Pensar a República. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
[4] KUSCHNIR, Karina, CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: cultura política e antropologia da política. In: Estudos Históricos. N° 24, p.227, 1999/2.
[5] BAQUERO, M.; MORAIS, J. A. “Desigualdade e democracia na América Latina: o papel da inércia na construção de uma cultura política democrática”. In: I Seminário Internacional de Ciência Política, Porto Alegre. Anais I SICP, p. 1-25, 2015.
[6] RIBEIRO, Renato Janine. Democracia versus República. In: Newton Bignotto (Org.) Pensar a República. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.22, 2000.
[7] CARVALHO, José Murilo de. . Cidadania no Brasil – o longo caminho. 19ª ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2015.