“O mundo antigo voltou para a assombrar como um fantasma que sussurra em um sonho como construir o mundo novo, pedra por pedra. A partir daí, eu sabia que nada mudaria. Que tudo ficaria como antes. As rodas dentadas giram em um círculo.
Um destino ligado ao próximo. O fio, vermelho como o sangue, junta todas nossas ações. Ninguém consegue quebrar os nós. Mas eles podem ser cortados. Ele cortou nossos, com uma lâmina afiada. Porém algo ficou para trás que não pode ser cortado. Uma ligação invisível."
Para iniciar meu ensaio de hoje, trouxe um trecho do monólogo do mito de Ariadne, recitado duas vezes pela personagem Martha, em Dark. Ao longo do meu texto vocês entenderão o porquê de eu ter escolhido começar de tal forma e então verão que “Tudo está conectado".
Confesso que comecei a assistir à série alemã por mero acaso. Tinha finalizado um outro seriado do qual gostava e estava sem opções. Dei um google pra ver algumas sugestões interessantes no streaming naquele mês e me deparei com a breve descrição de Dark: "Quatro famílias iniciam uma desesperada busca por respostas quando uma criança desaparece e um complexo mistério envolvendo três gerações começa a se revelar."
Como não havia mais nada de interessante pra fazer naquela sexta do início de 2018, e me agrada bastante o cinema alemão, resolvi dar uma chance ao programa.
No primeiro episódio, admito não ter visto nada demais e fiquei um tanto quanto confusa, mas fui adiante. E não é que me vi viciada?
Acabei os episódios ao longo de alguns dias e estava intrigada pra saber o que aconteceria com aqueles personagens.
Aí veio a espera pela segunda temporada, sua estréia e novos questionamentos foram sendo criados na minha cabeça. A série provocava minha atenção, memória, raciocínio, emoção, como nenhuma outra havia feito antes.
Por fim, chegamos à temporada final e o diretor continuou a me surpreender. O seriado mostrou coerência até o fim. E fiquei bastante (re)mexida com todo o percusso.
Mas porque Dark mexe tanto com a gente? Quais são os pontos de identificação para que um número enorme de pessoas tenha se apaixonado e mergulhado na trama construída por Baran bo Odar?
Pra início de conversa, a viagem no tempo sempre foi algo desejado pelo ser humano, que o diga De volta para o futuro e Doctor Who. Quem não gostaria de romper/manter um nó do passado ou saber o que se passa no seu futuro?
Inclusive a mente humana é alucinada por criar esses cenários de remorso sobre o que já passou e do que poderia vir a ser, e isso traz grande parte da nossa agonia.
Nosso presente dificilmente é algo degustado, desejado. Parece que estamos sempre alternando entre esses dois “mundos", projetando realidades infinitas. O seriado materializa esse conflito do nosso dia a dia muito bem.
Mas Dark tem outros quê’s a mais.
A exemplo do tema da finitude, e seus desdobramentos. Como cada um vai lidar com a morte e as sensações que ela carrega. A vontade de “consertar tudo isso", voltar no ponto onde algo mínimo poderia ter feito a diferença para salvar a vida de alguém que amamos e se foi.
Na trajetória dos personagens, todos os problemas vão se desenrolando em um looping contínuo, por conta dessa dificuldade de aceitar a morte, transitando entre o amor e o desespero.
Curioso que nosso momento atual esteja tão permeado por essa questão da finitude que nos ronda, na ameaça de um inimigo invisível. Mais um ponto que traz essa identificação com Jonas, Martha e companhia.
Seguindo e analisando um pouco mais à fundo, podemos fazer um paralelo com nossa vida e questões psicológicas.
Assim como em Dark, o nó vai se mantendo, se repetindo ad eternum, o mesmo pode acontecer comigo e com você.
Os moradores de Widen acreditam que estão fazendo algo diferente para mudar a situação que os aflige, mas apenas a perpetuam e sofrem cada vez mais com tal atitude.
Isso também ocorre com todos nós, através da história de cada um, nosso Dark individual.
Como assim? Determinismo, Sarah?
Não exatamente. Mas essa perpetuação pode acontecer sim e quebrar o ciclo (o Ouroboros – cobra que morde o próprio rabo) exige trabalho e tempo.
Estou falando dos nossos Esquemas de crenças, leitores.
De acordo com o psicólogo Jeffrey Young, um Esquema é um “padrão de funcionamento que se inicia na infância e se perpetua por toda a vida (...) Fomos abandonados, criticados, superprotegidos, abusados, excluídos ou privamos. Inevitavelmente os esquemas acabam fazendo parte de nossa personalidade. Mesmo saindo da casa onde crescemos, continuamos entrando em situações nas quais somos maltratados, ignorados, machucados ou controlados e acabamos falhando em alcançar nossos objetivos de vida.”
Eles nada mais são do que um conjunto de coisas que acreditamos sobre nós mesmos, sobre os outros, e tiveram origem através das relações parentais que experimentamos quando crianças, nas quais algumas necessidades emocionais não foram atendidas.
Essa forma de pensar, sentir, agir, apesar de nos fazer sofrer, nos atrai e aprisiona, como o labirinto de Dédalo. Um fio de Ariadne psíquico que nos leva, por vezes a se relacionar de novo e de novo com pessoas que nos lembram essas questões, e a continuar em sofrimento.
Assim, por exemplo, alguém que teve uma família extremamente abusiva, na qual o apego era instável, onde não se sabia o que esperar, gritos eram proferidos a todo momento, foi uma criança que aprendeu a confundir agressão com afeto.
Passou a acreditar em frases como “As pessoas vão se aproveitar de mim, vão me magoar” ou “Devo machucar as pessoas antes que elas me machuquem.”
Ao se tornar adulto, uma das coisas que pode acontecer com frequência é que essa pessoa se atraia por relações abusivas, que esta se resigne nisso, afinal ela aprendeu que quem deveria amá-la e protegê-la, também a agride, de alguma forma. Ou ela pode acabar sendo abusiva com quem se relaciona. E uma terceira opção possível seria evitar a qualquer custo se relacionar com alguém por medo de se abusada. Nenhuma das três trará alívio.
Isso pode se repetir muitas vezes (até mesmo de uma forma tênue) e ela nem irá notar que está nesse looping.
Como eu falei antes, não é fácil sair disso. Sem querer, acabamos refazendo o caminho semelhante no labirinto. Por ser uma dor conhecida, ela nos chama de novo.
Da mesma forma que na série, para enfraquecer esse padrão e fazer diferente, é preciso entendê-lo, enfrentá-lo e enfraquecê-lo, mesmo que nos pareça tão convidativo fazer o contrário. E não adianta simplesmente querer matar esse algoz. Você vai ter que se resolver com ele.
Dark nos coloca de frente com essa dor repetitiva e conseguimos perceber os padrões em vários personagens: Jonas, Martha, Ulrich, Hannah, Cláudia, etc.
Esse é o maior ponto de identificação, ao meu ver. Mesmo que você nem soubesse o que são Esquemas de crenças, isso provavelmente mexeu com você, porque lhe é familiar.
Eu me vi torcendo para que Jonas e Martha ficassem juntos, e percebi que realmente o “bug da matrix", o nó, era essa repetição disfuncional.
Por mais que pareça um “par perfeito" e poético, talvez estar com essa pessoa, ou ser amiga dela, não te faça bem, assim como não fez aos dois.
E há que se voltar à origem de tudo, como foi necessário para eles, reparar o que doeu no passado, afim de que você não seja levado a sentir essa dor tantas vezes no presente.
Enfim, já estou me alongando muito nessas elucubrações. Essa é minha visão do que nos engancha tanto em Dark, mas pra você podem ser outros nós. Se ainda não viu a última temporada, assista e faça suas próprias análises, elas podem ser infinitas. E ao final de tudo: “O fim é o começo e o começo é o fim.”
Referência: Young, Jeffrey E. Reinvente sua vida. 2a Edição. Sinopsys, 2020.