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QUAL O PAPEL DE UM PROFESSOR DE ESQUERDA NO SÉCULO XXI?



O que passa pela sua cabeça quando você escuta a palavra PODER? Se me permite, vou arriscar algumas hipóteses, ou melhor, cinco. A primeira delas é 1) violência, seja física ou mental, além de outras formas de desconforto e frustração. A segunda é 2) verticalidade, já que o PODER se exerce de cima para baixo, de preferência entre um dominante e um dominado. A terceira é a 3) centralidade, ou seja, esse PODER não é disperso, mas brota de alguém ou de algum lugar, tendo, portanto, um centro, uma origem. A quarta é a 4) soma zero: enquanto alguns ganham, outros necessariamente perdem. E, por fim, mas não menos importante, a quinta hipótese: 5) O ocultamento, já que o PODER não seria explícito, evidente, mas algo oculto e subterrâneo.


Nas ciências sociais, e nas humanas, de maneira geral, essa noção de PODER, ainda que venha com alguns retoques, como conceitos e outras referências, no final das contas mantém as cincos características que sugeri no primeiro parágrafo. Se eu sofro, se a minha experiência é atravessada por instantes de angústia, dores de cabeça e crises, provavelmente a CAUSA desse sofrimento se encontra acima de mim, talvez oferecido pelo Estado, pelo Capitalismo, pela Mídia ou pela Polícia. Esse é o famoso PODER NEGATIVO de Foucault, apresentado em seu clássico Vigiar e Punir, livro de 1975, marcando sua fase genealógica. Esse é o típico poder do “Déspota sentado no trono”, aquela figura que diz “Não”, aquele poder que me oprime e me ofende, violentando a própria consistência da minha identidade e de tudo aquilo que mais acredito, quase sempre de forma oculta, subterrânea. Esse é o poder que se apresenta de forma externa, como uma força que vem de fora para dentro, invadindo minha intimidade de um jeito invasivo e estranho. Esse é o típico poder presente no conceito de ideologia, assim como também contido na dialética. No método dialético, com exceção de versões não ortodoxas (Adorno, Žižek e Badiou), a jornada se resume a uma busca por causas, de preferência aquelas verticalizadas e inscritas em uma hierarquia sutil. Nesse cenário, o papel do professor de esquerda é oferecer aos estudantes condições epistemológicas e éticas de detectar hierarquias, desigualdades, violências, exclusões, assim como suas causas. Como consequência dessa noção de PODER NEGATIVO, o mundo é apresentado como um campo de batalha constante, um espaço de combate envolvendo, de maneira geral, dois grupos em duas posições desiguais.


O outro tipo de poder, chamado por Foucault de POSITIVO, segue por um caminho muito mais modesto, disperso, comum, sendo resultado do método genealógico. Enquanto a dialética clássica resgata formas verticalizadas de interação, podendo aparecer no formato de estruturas ou sistemas, a genealogia, ao contrário, envolve a presença de redes, rizomas, malhas, fluidos, e outros arranjos descentrados. Já que não trabalha com causas, muito menos aquelas verticais, a abordagem genealógica resgata um campo de possibilidades, seja ele epistemológico (Foucault), imanente (Deleuze), semiótico (Žižek) ou simbólico (Bourdieu, Berger, Bauman). O PODER POSITIVO se refere a um tipo de experiência mais espontânea no cotidiano, envolvendo o modo como ele se organiza, assim como seus detalhes e atritos. Por ser descentrado, não entra em uma estrutura previsível, nem sequer brota de alguém ou de algum lugar, mas se dissolve nos pequenos encontros, nos vários contornos da experiência, assim como em suas formas de produção de sentido e identidade. Na abordagem foucaultiana, por conta de sua genealogia, o poder não é visto apenas na relação entre Professor e Aluno, Empregador e Empregado, Branco e Negro, Homem e Mulher, Hetero e Gay, mas também na relação entre mãe e filho, amigos, familiares, assim como aqueles encontros com o padeiro, com o colega chato que senta no corredor, com a empresa de internet que demora muito no conserto da fiação, com o vizinho que continua ouvindo o som alto, com sua amiga que sempre faz fofocas sobre você, com aquele colega que interpretou errado sua última mensagem no WhatsApp, além de bilhões e bilhões de outros exemplos desconexos, já que não se encaixam em uma grande narrativa épica ou vertical. São exemplos dispersos, descentrados, nada mais do que um fluxo de encontros que não cabe em um sistema ou estrutura. Apesar de não muito glamuroso, essa dimensão fenomenológica, espontânea, o que Deleuze chamou de Tempo Morto, compõe boa parte de tudo o que experimentamos, fazendo do meu cotidiano algo bem mais simples do que poderíamos imaginar. A maior parte das nossas experiências infelizmente não se encaixam em uma grande narrativa de fundo, por mais interessante que isso pareça. Nem sempre somos protagonistas em um jogo de tabuleiro bem estruturado, ou sistêmico, mas muitas vezes apenas figuras normais, fazendo coisas normais com pessoas normais. Duvida? Vamos fazer um teste rápido:


Pense na sua semana, em especial todos os conflitos que você teve ao longo dos dias... pense nas dores de cabeça, nas confusões, nos mal-entendidos, além de outros embates. Pense também no seu sofrimento, principalmente naqueles instantes que você chorou e sofreu, ou, no mínimo, aqueles momentos que envolveram tristeza ou decepção. Quantos deles podem ser colocados em um modelo vertical, em uma forma negativa de poder? Quantos deles estão realmente dentro de uma estrutura que envolve dominantes e dominados?


Por conta desse caráter disperso das experiências, dessa quantidade de Tempo Morto que transborda sistemas e estruturas, o objetivo de um professor de esquerda não é apenas formar guerreiros, por mais que seja necessário manter o espírito de combate aceso, até porque racismo, homofobia, machismo, e outros obstáculos pelo caminho, são dimensões reais e perigosas. Mas precisamos também formar diplomatas, pessoas capazes de negociar, ao ver o mundo de uma forma mais complexa e descentrada. Em um mundo tão complexo, com pessoas e ideias cheias de profundidade, não faz sentido apenas uma única estrutura vertical de linguagem, um único modelo de lidar com os problemas. É preciso preparar o aluno também com novas ferramentas práticas, com novas estratégias de sentido, caso contrário ele vai sentir impotente diante de situações híbridas, como diria Latour, ou descentradas, como diria Deleuze. Ainda que o poder negativo exista, e deva ser combatido, é preciso também oferecer ao aluno do século XXI novas possibilidades, novos modos de interpretar o mundo, as pessoas e a si mesmo. Sem dúvida precisamos de guerreiros, mas também de diplomatas, de figuras capazes de negociar com um mundo complexo, disperso e muitas vezes sem nada de épico, glamuroso ou bem estruturado.


Referência da Imagem:

http://wiki-education.org/presentation-skills.html

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