QUANDO O MARXISMO ENCONTRA A PSICANÁLISE
- Thiago Araujo Pinho
- 4 de jun. de 2020
- 5 min de leitura

É normal imaginar o comunismo como uma substância, como uma realidade definida e objetiva, muitas vezes até mesmo como um momento óbvio e metafísico na história humana. Nesse sentido, o significante “C-O-M-U-N-I-S-M-O” indicaria uma conexão sólida com algo lá fora, de preferência com um conjunto definido de ideias, valores, além de práticas bem direcionadas. Em Žižek, ao contrário, o comunismo segue um percurso diferente, muitos diriam estranho, já que, segundo ele, o comunismo “não é”. “O que isso significa?”, pergunta você, curioso. Isso significa que ele não é uma identidade, muito menos um predicado, sendo apenas uma estrutura diferencial, ou seja, um contraste. Ele é apenas aquilo que sai da curva, em um tipo de excesso inconveniente. Já que o comunismo é o Real do sistema capitalista (Badiou), aquilo que foge de qualquer amarra simbólica, transbordando todo tipo de fronteira, essa palavra acaba sendo mais do que um conceito, principalmente porque não é definido por alguma representação específica, uma imagem de mundo que passeia pela consciência das pessoas.
O comunismo não é um predicado, mas um movimento, sendo apenas válido enquanto um espaço de negação, de alteridade, ou seja, enquanto esse instante que resiste ao que Adorno chamou de princípio de identidade. O comunismo, portanto, não é definido por algum contorno positivo, envolvendo definições claras, muito menos uma metafísica que envolve o fim das contradições, como é apresentado naquela versão mais ortodoxa de Lukács e Mészáros, ou mesmo em Marcuse em seu Eros e Civilização. Ele é, ao contrário, apenas aquilo que escapa, aquilo que “não é”, aquela instância que foge e jamais se enquadra. Como diria Badiou, o comunismo é a verdade do capitalismo, o seu corpo sem órgão (Deleuze), o seu inconsciente. Ele é válido apenas enquanto uma virtualidade, enquanto uma potência que não é realizada, mas que permanece sempre nos bastidores, como um tipo de mancha insistente e nem um pouco bem-vinda.
Žižek e Badiou são adornianos no sentido de compartilharem, no fundo, a mesma dialética negativa, a mesma ideia de que a definição de esquerda se resume no percurso, e não na chegada, evitando assim qualquer traço de síntese metafísica, ou seja, de qualquer identidade bem sugerida e auto evidente. Eles não buscam um paraíso, muito menos um espaço onde as contradições seriam reconciliadas, mas sim esse instante de fuga e de excesso contínuo. O comunismo, nesse sentido, apenas existe porque o capitalismo existe, porque o sistema capitalista se apresenta como um todo óbvio e absoluto (Fukuyama).
O comunismo, segundo Žižek e Badiou, se apresenta como um tipo de mancha, mas não qualquer uma. Essa coisa insistente, esse traço difícil de remover ou disfarçar, compromete os contornos desse tecido de significantes que chamamos de realidade, ameaçando sua consistência simbólica e imaginária. A mancha é válida não enquanto tal, mas apenas como contraste, principalmente quando se manifesta sobre um fundo branco. Ou seja, essa mancha lacaniana faz parte de um circuito de diferenças, não tendo substância, muito menos profundidade, mas apenas algo que compromete a firmeza e a consistência de outro algo. Em outras palavras, quanto mais branco é o tecido, quanto mais pretensioso é sua costura de significantes, mais a mancha ganha destaque, mais ela salta aos olhos. A mancha não apresenta uma identidade clara, mas é um puro exercício de alteridade, de resistência, sendo apenas um ponto de contraste e nada além. O comunismo é essa mancha, esse contraste na estrutura capitalista. Isso significa dizer que daqui há 1000 anos, se esse novo modo de produção for implantado, precisaremos de uma nova mancha, de um novo corpo sem orgão, o que nos leva a uma hipótese interessante: A esquerda daqui há 1000 anos será anti-comunista.
Essa noção de comunismo, entendida não como substância, mas como um elemento mais flexível, apenas faz sentido dentro de um tipo específico de marxismo, um que não segue os contornos ortodoxos de uma ontologia de classe. Em Žižek, assim como em Laclau, por exemplo, a classe é muito mais um significante vazio que organiza de forma pragmática outros significantes como “feminismo”, “movimento LGBT+”, “movimento negro”, etc, e não uma substância obvia que estrutura a realidade como um todo. É muito mais um tipo de metalinguagem, ao invés de uma descrição ingênua de um mundo lá fora, em uma espécie de correspondência.
O que Adorno, Badiou, Žižek, Deleuze e Laclau tem em comum? Eles compartilham a psicanálise como um pano de fundo, seja ela freudiana (Adorno), lacaniana (Badiou, Laclau e Žižek) ou esquizoanalítica (Deleuze). Essa característica criou as condições de possibilidade de uma nova forma de marxismo, chamado por mim de alternativo, ao contrário do perfil mais clássico de autores como Lukács e Mészáros, que compartilham uma noção ortodoxa, ou seja, um tipo de abordagem que ainda sustenta uma ontologia de classe e uma noção substancialista de linguagem.
O marxismo alternativo, por conta do seu conceito fraco de linguagem, nada tautológico, ou substancialista, acaba sendo muito mais aberto a diálogos e a novas formas de envolvimento. O ortodoxo, ao contrário, por conta da centralidade rígida do seu conceito de classe, não sendo um mero conceito epistemológico, mas sim ontológico, hoje se vê resumido a pequenos eventos pontuais e a grupos de pesquisa que sempre discutem o mesmo conjunto de temas e autores, assim como também circulam pelas mesmas revistas e eventos acadêmicos. Em outras palavras, o marxismo ortodoxo vive isolado, embora completamente seguro de si e de seu papel civilizatório.
Zižek é capaz de debater com abordagens contemporâneas como o realismo especulativo e a ontologia orientada ao objeto, apenas graças ao seu caráter alternativo, graças à psicanálise, o que produziu numa crítica da versão forte de ontologia (predicativa), o que Heidegger chamou de abordagem ontoteológica. Já o marxismo ortodoxo, ainda muito presente em nossos cursos de humanas, jamais perderia seu precioso tempo lendo um livro como “O objeto quádruplo”, ou "A democracia dos objetos”, já que provavelmente são “produtos ideológicos neoliberais e sem qualquer sentido”, assim como abordagens fenomenológicas, pragmatistas, vitalistas seriam lançadas na obscuridade. O marxismo ortodoxo, infelizmente, se fechou dentro de um circuito científico repetitivo, falando apenas para si mesmo, apenas para o seu secto privilegiado de pessoas especiais. Eles produziram, ao contrário do que imaginava Thomas Kuhn, um tipo de ciência normal improvisada, criando, ao mesmo tempo, uma falsa impressão de consenso, de estabilidade, principalmente porque circulam apenas por espaços que reforçam aquilo que já sabem. O marxismo ortodoxo não reconhece nada além de si mesmo, resumindo tudo aquilo de novo e inédito a rótulos como “pós-modernismo”, “neoliberal”, além de muitos outros títulos simplificados. Por conta de sua ontologia classe, e da rigidez como usa a linguagem, não existe espaço ao diálogo ou nada do tipo, a não ser ao clássico lema presente em vários corredores das ciências humanas “ou você está comigo ou contra mim”.
Além disso, o uso do termo comunismo no circuito mais ortodoxo não tem nada de flexível. Ele normalmente é oferecido como um espaço óbvio de libertação, uma alternativa que todos devem compreender, caso contrário... ou melhor, não tem caso contrário. Só existe uma única opção, e apenas uma. Ao invés de entender o comunismo como um significante, um excesso produzido pelo sistema capitalista, enquanto algo que transborda e compromete estruturas identitárias, o individuo ortodoxo substancializa o comunismo, conferindo a ele contornos claros, como se fosse uma evidente etapa histórica. Esse nível de pretensão apenas gera ódio, e não apenas por parte dos setores reacionários. Uma pretensão ontológica, misturada com um puritanismo difícil de digerir, produziu uma carapaça muito rígida e inflexível. Nesse modo ortodoxo, ao contrário do marxismo psicanalítico, nada transborda, escapa, silencia... tudo apenas se encadeia dentro de um retrato rigido e paranoico da realidade. Tudo é um pretexto que justifica uma ontologia rigida e pré-definida.
O marxismo alternativo, ao contrário, como de Adorno, Deleuze, Žižek, Badiou, Laclau, talvez por conta da proximidade com a psicanálise, oferece uma outra forma de linguagem, um tipo de postura mais flexível e aberta, sendo necessária dentro de uma democracia complexa e dinâmica como a nossa. A esquerda não precisa de emissários da verdade, de criaturas esclarecidas que descobriram a pedra filosofal, mas sim negociadores, diplomatas, pessoas capazes de acompanhar as mudanças do mundo e as novas formas de experiência.
Referência da Imagem:
https://christiannashbeas.wordpress.com/sigmund-freud-and-karl-marx/