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Paulo Guedes e a diferença que não interessa às instituições democráticas


Na famigerada reunião ministerial do governo de Bolsonaro ocorrida no último dia 22 de abril, o ministro da economia, Paulo Guedes, afirmou que esse governo é diferente e que eles, referindo-se às demais forças políticas e à opinião pública nacional, sabem disso. Trata-se de uma declaração extremamente reveladora das forças políticas que atualmente dominam o executivo federal. Podemos tomá-la, também, como uma espécie de manifestação de uma autopercepção coletiva expressa em fala. Ora, um governo que, em sua área econômica, assumiu propagando o discurso de que desde a redemocratização vivemos uma hegemonia da esquerda e das ideias socialistas no Brasil e que agora era a hora de o livre mercado de fato assumir as rédeas da economia nacional e que continua, direta e indiretamente, reproduzindo tal retórica, de fato demonstra uma força discursiva diferenciada e confirmadora de uma diferença desse grupo em relação a todos que vieram antes! O que não necessariamente significa ser algo construtivo para o país, diga-se de passagem.


Segundo o dicionário Michaelis, dogma, palavra de origem grega, significa “qualquer doutrina (religiosa, política, filosófica etc.) sustentada por princípios indiscutíveis e que devem, portanto, ser aceitos por todos como expressão da verdade” (1). Paulo Guedes e seu dogma foram confrontados com a realidade de modo relativamente rápido, desde que esse governo assumiu o poder, no começo do ano passado. Se a ideologia neoliberal ainda gozava de certo conforto entre os grandes centros do pensamento econômico que influenciam os governos do mundo inteiro, mesmo que após a crise de 2008 tenha ficado claro que ela não era algo dotado de tanta eficiência e poder de regeneração como apregoavam esses gurus do mercado, enfim, após o advento da Covid-19 tornou-se mais que nítido e difícil de continuar a ser negado pelas mentes fundamentalistas pró-mercado o fato de que o Estado atuando ativamente na estruturação de um sistema de saúde forte é algo não só viável como necessário a qualquer país, que o diga o primeiro-ministro britânico, o conservador Boris Johnson, tratado e recuperado do coronavírus no National Health Service, o SUS do Reino Unido, inspirador o nosso.


Mas uma ideologia não seria ideologia se não tivesse capacidade de continuar a reproduzir uma distorção perceptiva da realidade para além do tempo em que é desmascarada pelos fatos. Sendo assim, o Sr. Guedes insiste, na tal reunião, afirmando que o Banco do Brasil está pronto para ser privatizado e que o governo não deve abrir mão dos princípios econômicos com os quais foi eleito, pois ele, Guedes, já lera diversos livros sobre a reconstrução de países como a Alemanha e o Chile e que, portanto, sabe do que fala.


Essa fala do ministro da economia que consegue ser querido por bolsonaristas e pela Globo ao mesmo tempo, pelo simples fato de ser um dos representantes mais puristas da ideologia do livre mercado no país e ao mesmo tempo um sujeito que deixa claro ser antipático à classe trabalhadora, aos servidores públicos e seus respectivos organismos representativos, apresenta uma falha intelectual grave. Mesmo não concordando com o que ele chama de reconstrução do Chile, pelo nível de precarização das relações trabalhistas, não eliminação da pobreza e de pauperização dos idosos pelos altos déficits de assistência previdenciária gerados pela experiência neoliberal imposta pela ditadura de Pinochet, o país de fato adotou um modelo neoliberal, aliás, foi o primeiro do mundo a adotá-lo. Logo, parte da afirmação é verdadeira, por mais que a outra seja contestável. É inegável ainda o fato de que, como laboratório econômico, algumas melhorias no país de fato ocorreram, já que era imprescindível o investimento pesado de empresas estrangeiras para dourar a pílula ideológica e vender o modelo aos quatro cantos do globo. Mas as revoltas populares de 2019 e as demandas reprimidas pela população, como as de saúde e educação públicas de qualidade, mostraram que o saldo não foi tão positivo como as vozes liberalizantes vinham sustentando desde os anos 70.


Quanto à Alemanha, o Sr. Guedes falou uma baita besteira! Se ele leu tantos livros sobre as reconstruções alemãs nos pós-guerras como disse ter lido, fiquei na dúvida se esses não teriam sido livros de Olavo de Carvalho, guru do seu chefe, isto é, obras compostas por inverdades e alucinações da primeira à última página, já que em nenhuma das duas reconstruções o modelo neoliberal fora aplicado, inclusive pela impossibilidade lógico-temporal disto, considerando-se o fato de esta doutrina somente ter ganhado destaque na década de 70, três décadas posteriores à de início da reconstrução alemã no segundo pós-guerra. O outro erro é histórico, mesmo. Não há que se falar em reconstrução alemã, ao menos não num sentido substancial, após a Primeira Guerra Mundial, já que é justamente o prolongamento de sua hiperinflação e consequente deterioração do nível de vida de seus cidadãos no primeiro pós-guerra que leva ao poder, nos anos 30, Adolf Hitler e o Partido Nazista.


No segundo pós-guerra, aí sim ocorreu uma gigantesca recuperação da Alemanha, sob o chamado Plano Marshall, uma injeção à época bastante volumosa de dinheiro por parte dos Estados Unidos na Alemanha Ocidental e noutros países europeus que se mantiveram sob sua órbita de influência para assim fortalecer o mercado capitalista na região e combater a possibilidade da chamada expansão comunista da antiga União Soviética sobre o continente. E essa reconstrução se deu com o Estado alemão e dos outros países beneficiados pelo plano de socorro econômico investindo pesado na industrialização nacional, em leis trabalhistas que serviriam para ampliar o bem estar e qualidade de vida da classe trabalhadora e numa tributação capaz de gerar a capacidade de sustentar políticas sociais em larga escala que serviram para amenizar os conflitos de classe durante grande parte da segunda metade do século passado. Isto é, a reconstrução não foi pela via liberalizante, mas, ao contrário, deu-se segundo um viés keynesiano ou desenvolvimentista, com ampla participação estatal na condução da economia.


Como vemos, quando se opta até a medula pela tarefa de propagar um dogma, a verdade passa a ser algo flexível. E aí eu me pergunto: se nem uma crise como essa, que vem mostrando, mais uma vez, que sem investimento público dificilmente empresas privadas estrangeiras vão querer investir num país que está à beira de se tornar o epicentro da pandemia no mundo, se nem assim, enfim, um homem como Paulo Guedes consegue colocar a mão na consciência e rever aquilo que acredita ser o norte para a economia de um país, qual o poder da realidade sobre as ideias de determinadas pessoas? Aí é que está: e se Guedes souber que está errado e mesmo assim acreditar na própria mentira que conta por entendê-la como uma verdade macro imune às contingências da realidade material? Não estou aqui nem levando em conta o autointeresse de um investidor do mercado financeiro, algo que ele é, pois o neoliberalismo é a única ideologia que possibilita não haver contrassenso algum entre pregar a superioridade do mercado e ao mesmo tempo investir ou ser patrocinado para elogiar os que nele investem. Liberais como Roberto Campos, que dizia não ligar para dinheiro e só querer o suficiente para custear sua cultura pessoal, são raros entre os propagadores da doutrina.


É importante ressaltar algo implícito nesse apego dogmática do Sr. Guedes, isto é, o autoritarismo expresso na incapacidade política (política enquanto diálogo) presente na persistência cega na aplicação de um modelo econômico de modo puro. Costumamos enxergar autoritarismo somente nos arroubos de Bolsonaro, mas geralmente esquecemos que o homem de voz mais polida e certo ar de civilidade visto na pessoa do ministro da economia é integrante essencial de um governo que se vende em bloco como antipolítico, mesmo o seu líder tendo estado durante quase três décadas nas fileiras do congresso nacional. É conveniente para esse governo e para Paulo Guedes manter sempre em alta esse discurso contra a política, pois isto aponta para uma solução de governabilidade possível para o grupo, ou seja, ao mesmo tempo em que serve para ajudar a fixar no imaginário de seus eleitores mais fanáticos a imagem de um governo contrário a “tudo isso que está aí!”, honesto e bem intencionado, serve igualmente para jogar “nisso tudo que está aí” a culpa pelo seu próprio fracasso. Só não se sabe até quando isso dará certo.


Fracasso, no sentido acima posto, pode ser entendido aqui como um modelo de governo, ou melhor, um método de governar. Não governar e viver empurrando a administração dos problemas de Estado com a barriga, refugiando-se na luta constante contra algum inimigo novo a cada semana, é, sim, um método de governo, ou melhor, de desgoverno, no qual a insistência num modelo econômico extremamente equivocado, ainda mais num momento de grave crise sanitária e econômico como o atual, faz parte dessa espécie de máquina de desadministração inaugurada por Bolsonaro e seus subordinados diretos. “Nós somos diferentes, e eles sabem disso!”, noutros termos, nós somos firmes no nosso dogma, queremos impor uma mudança ao Brasil de qualquer jeito e transformá-lo num paraíso para o capital financeiro, e os políticos tradicionais e as instituições do Estado brasileiro não vão nos frear, afinal isso aqui precisa ser modernizado! Sem Bolsonaro no poder, um fanfarrão protofascista intolerável até para ela, a Globo não veria problema algum nesse raciocínio do Sr. Guedes. Tanto é assim, que ela vem flertando abertamente com o apoio ao vice-presidente, Hamilton Mourão, dando muitos indicativos de que faria o meio de campo propagandístico de um eventual governo deste, certamente buscando projetá-lo no imaginário popular como um governo de conciliação nacional mantendo Guedes no comando da economia.

Decidi comentar aqui somente algumas falas do ministro da economia, pois se fosse comentar o show de horrores que foi a bendita reunião como um todo, isso seria uma tarefa para muitos artigos. O meu objetivo aqui é deixar claro um aspecto, em essencial: não existe Bolsonaro sem o antipetismo que propiciou o embarque dos brasileiros no discurso antipolítico, e Paulo Guedes, um homem do mercado e não da política, não teria espaço num governo do campo democrático, ainda que obviamente de direita. A política democrática requer saber e querer atuar dentro de uma arena de conflitos mediada por um tom mínimo de civilidade institucional, numa atmosfera estruturada na possibilidade e até necessidade do contraditório assentado sob as bases da tolerância. E quem se vende como diferente justamente por se vender como antipolítico (leia-se antidemocrático), portanto, não cabe na política nem na administração do Estado, noutros termos, é nefasto ao país. Por isso é importante aos que pedem a saída de Bolsonaro, um déspota obscurantista, que peçam também a saída do Sr. Guedes, pois um é o complemento do outro, ainda que um costume mentir dizendo que leu livros que nunca leu. Fora, Bolsonaro! Fora, Paulo Guedes!


Fonte

  1. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=lxEv. Acesso em: 23/05/2020.


Imagem disponível em:


https://pleno.news/brasil/politica-nacional/reuniao-paulo-guedes-pediu-a-venda-do-banco-do-brasil.html

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