Durante a quarentena, comecei a assistir o seriado Sessão de Terapia, exibido pelo Globoplay, o que me deu o start para tratar de um assunto que considero de extrema importância na forma como as pessoas enxergam a profissão de psicóloga - desta humilde colunista que vos escreve.
A série tem origem israelense, intitulada BeTipul, e foi criada pelo psicanalista Hagai Levi. Esta gerou uma versão americana- In Treatment - mais conhecida internacionalmente.
Por aqui, em terras tupiniquins, foi adaptada por Jaqueline Vargas.
No enredo, acompanhamos o terapeuta Caio, vivido por Selton Mello (que também é o diretor do programa), nas suas sessões de atendimento de quatro pacientes: Chiara, Guilhermina, Nando e Haidé, um a cada dia da semana.
O dia de sexta é reservado para a sua própria terapia com Sofia, personagem de Morena Baccarin.
O seriado é bem rico em relação aos casos, e aborda temas preponderantes como machismo, abuso, envelhecimento e exposição em redes sociais.
Eu poderia falar bastante sobre cada uma das personalidades e questões que emergem nos pacientes de Caio (já nem gosto, não é verdade?!).
No entanto, a figura que quero trazer ao centro deste ensaio é a do personagem de Selton, do terapeuta, de quem está na posição de Sujeito Suposto Saber transferencial, segundo Lacan.
Quem me conhece, pode pensar: "Mas Sarah, você não é psicanalista e está escrevendo a partir da referência de uma série cuja base do roteiro bebe nessa abordagem e ainda por cima cita Lacan?"
Em primeiro lugar, sou psicóloga, e praticamente todas as teorias psicológicas tem uma referência, mesmo que pequena, da psicanálise.
Além disso, a transferência é algo deveras importante e vai aparecer em qualquer processo terapêutico, independente de qual for a linha teórica da psicóloga.
Portanto, engulam Lacan no texto da Beckiana aqui.
Sujeito Suposto Saber, na terapia, nada mais é do que a forma como o paciente vai enxergar seu terapeuta, a imagem que tem dele e, a partir da qual, o vínculo vai se estabelecer, ou seja, a transferência.
O paciente, mesmo sem conhecer seu terapeuta, traz um conceito, uma ideia de saber embutida nele, o que é interessante para o desenrolar da psicoterapia.
O meu questionamento nesse texto é de um Sujeito Suposto Saber deturpado, que o social se apropria e cristaliza na pessoa dos terapeutas, psicólogos em geral. Essa visão de alguém perfeito, inabalável e totalmente centrado a todo momento de vida – praticamente um robô teleguiado.
Penso que o roteiro da série quis trazer isso à tona, pois mostra de forma perspicaz, e até bem humorada (apesar de em alguns pontos se tratar de um drama) as mazelas do próprio Caio.
Os episódios colocam em evidência o homem de carne, osso, dores e inquietações que vive no terapeuta, em doses homeopáticas, principalmente em suas sessões com Sofia – que são fantásticas, diga-se de passagem. E até nuances da humanidade da terapeuta de Caio aparecem nas entrelinhas das cenas.
Então, eu tenho uma notícia, leitores: ninguém é perfeito, nem mesmo sua terapeuta! Todos temos nossas angústias e sofrimento com os quais é preciso lidar.
Por vezes, o social cobra: “Nossa, você é psicóloga, não pode se irritar!”
Sentir raiva, tristeza, medo, ansiedade, é inerente ao ser humano e totalmente normal, ninguém está ileso, nem mesmo nós, também somos vulneráveis.
Para que estas vulnerabilidades não nos atrapalhem, não nos confundam ao lidarmos com nossos pacientes, precisamos nos trabalhar também, em terapia.
Na série, percebemos pontos em que o personagem de Selton se emaranha na questão do paciente, que se assemelha a alguma das suas, e precisa do olhar de Sofia, da sua postura neutra, para perceber e elaborar isso.
É lindo ver um programa que aponte esse outro ângulo da terapia, o da contratransferência e como o psicoterapeuta vai reagir às emoções do outro, seus limites. Essa é dança que constrói o processo.
Psicóloga não é robô. Se assim o fosse, como teria a empatia necessária para conduzir o caminho com seu paciente? Como entenderia o doer de uma dor indizível?
Não somos plenos, muito menos impassíveis, estaremos estressados algum dia, assim como você. A diferença é que talvez tenhamos mais instrumentos para lidar com isso, todavia também precisamos ser cuidados.
Inclusive, é importante ressaltar que não precisamos esconder isso. Colocar a máscara do profissional impecável seria uma carga muito grande para levar consigo, penso que até prejudicaria a atuação.
Em tempos de pandemia, assim como Caio, a maioria de nós teve que levar o setting terapêutico pra dentro de suas casas, o que exige ainda mais desprendimento dessa imagem e o manejo da tal vulnerabilidade, dentro de certos limites. São novos aprendizados a cada dia de atendimento online.
E que alívio para o paciente saber que aquela pessoa que o escuta, entende sua angústia, porque também a sente, de forma diferente, não é mesmo?
O importante é que as suas emoções não interfiram na neutralidade que precisa trazer à sessão, no olhar para com quem está sentado no sofá ou na poltrona à frente.
Ninguém vai sair abrindo sua intimidade para o/a paciente (até porque isso não seria nada terapêutico), mas é necessário autenticidade como pessoa.
Afinal, como constata Brené Brown em suas pesquisas sobre vulnerabilidade, medo e vergonha, mostrar sua imperfeição pode ser a coisa mais corajosa e saudável que o ser humano pode fazer, não uma fraqueza, como normalmente se pensa.
E pra mim, leitor, faz parte de ser uma terapeuta autentica, real, humanizada.
Referências:
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
BROWN, Brené. A Coragem de Ser Imperfeito; Ed. Sextante, 2016.