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Foto do escritorCarlos Henrique Cardoso

Apropriação Cultural: Entre a feijoada e o carnaval


No último carnaval, surgiu um debate em torno de uma fantasia utilizada pela atriz Alessandra Negrini. Tratava-se de um figurino com adereços e pinturas indígenas, que serviu para a artista desfilar pela Acadêmicos da Baixo Augusta, representando a agremiação na folia paulistana. Foi o suficiente para uma movimentação nas redes sociais repudiando o traje, partindo de Katú Mirim, uma ativista indígena de 31 anos que levantou a hashtag #indionaoefantasia. Recebeu apoio de vários internautas e a atriz chegou a ser “cancelada”. Acontece que Negrini foi maquiada por outra ativista indígena, a ex-candidata a vice-presidência Sônia Guajajara, que afirmou a importância do gesto de Negrini, ensejando a visibilidade às causas dos povos indígenas. Essa disputa de narrativas girou em torno de uma questão que vez ou outra aparece, delineando significados e conceitos para definir se nesse episódio ocorreu uma apropriação cultural.


Esse termo caracteriza a adoção de elementos de uma cultura por uma pessoa ou grupo que não faz parte dela. No caso descrito acima, a atriz teria usurpado itens de uma cultura que ela não detinha o mínimo conhecimento. As opiniões foram equilibradas, tanto concordando com a apropriação indevida, quanto discordando, garantindo que fantasias carnavalescas não podem ser apontadas como apropriação, pois configuram uso em contexto brincante e efêmero. Todavia, há limites para configurar o que é apropriação ou não?


Vamos falar de comida agora, tentando estabelecer um paralelo de entendimentos. A feijoada é oriunda da senzala, um fator de “sustança” para o rendimento físico nos duros trabalhos perpetrados pelo regime escravocrata aos negros. Com o passar dos tempos, esse prato foi ressignificado pelas classes dominantes e à medida que a brasilidade ganhava contornos, com fatores culturais e artísticos dimensionando sentidos de identidade nacional, a feijoada foi convertida de simbolismo étnico para elemento icônico nacional, assim como o samba, e outros elementos. Ela é utilizada em todas as camadas sociais do país para celebrações, festividades, socialização familiar, e sobretudo, receptividade a visitantes estrangeiros. Para Peter Fry, essa conversão de “comida de pobre” para expressão da unidade nacional configura passagem de algo “sujo” para outro “seguro”, domesticado. Roberto DaMatta considera que a feijoada é um exemplo de “culinária relacional”, um híbrido que combina o negro com o branco, pertencendo a todos e a ninguém.


Podemos sugerir que a feijoada passou por uma apropriação cultural, visto que foi “sequestrada” para ser recolocada como uma condição que perpassa valores étnicos, perdendo sua estrutura original e virando outra coisa. Portanto, a apropriação cultural seria um exercício de convergência entre culturas distintas, sendo que tudo parte de um elemento étnico estranho apossado para um reconhecimento tênue entre duas perspectivas diferentes, criando uma outra dimensão simbólica. A fantasia carnavalesca, segundo essa visão geral, não ultrapassa o terreno da apropriação, visto que se torna uma indumentária em ambiente festivo, não postergando nenhum sentido sincrético para além da festa. A apropriação cultural estaria vinculada a um contexto gerador de conceitos a serem constituídos.


Ainda assim, acredito não haver consenso para uma demanda que estabeleça a apropriação cultural como analisada aqui. O termo vem passando por investigações e necessita de um crivo maior de estudiosos. No entanto, deixo aqui impressões para que possamos refletir sobre sua utilização, principalmente nas redes sociais, tão propícia a debates superficiais.



FONTES:


https://g1.globo.com/carnaval/2018/noticia/indionaoefantasia-quem-e-a-indigena-que-iniciou-debate-sobre-uso-de-fantasias.ghtml


DAMATTA, Roberto. Sobre o simbolismo da comida. Correio da Unesco, 1987.


CANESQUI, Ana Maria. Olhares antropológicos sobre a alimentação. In: CANESQUI, Ana Maria; GARCIA, Rosa Wanda Diez (org). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.

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