Hegemonicamente as mulheres são pressionadas a maternidade. Principalmente na faixa dos trinta anos, quando ainda existe o estereótipo de que a mulher tem um tempo para procriar e que depois disso fica mais difícil significando que uma mulher não foi bem sucedida na sua vida, algo que retorna a sociedade patriarcal em seu estado primitivo quando os filhos eram a continuação de uma linhagem e uma mão de obra. Além de estar relacionado a um paradigma religioso pois gerar uma criança seria a cura para o pecado original de Eva, algo enfatizado em “O conto da aia” e que está ligado a supervalorização da maternidade na nossa sociedade.
Os estereótipos da maternidade constituem um risco para margear regimes distópicos como os de Margaret Atwood em “O conto da aia”. A distopia de 1985 tem como cenário a República de Gilead, governada pelos Olhos que nada mais são do que um grupo militar. Cada mulher tem uma função nessa sociedade. As esposas fazem companhia a seus maridos e se comportam como damas de elite, as Martas fazem o trabalho doméstico das casas e as Aiais procriam.
Existem outras categorias de mulheres, mas essas três são as que estão mais presentes na vida cotidiana de Gilead ou pelo menos as que mais se enfatizam em “O conto da aia”. A última categoria, a qual pertence Offred, a personagem principal, consiste nas mulheres de mais baixo escalão, mas que ao mesmo tempo possuem a função principal da República de Gilead: gerar bebês.
A trama em si faz todo um questionamento daquele regime totalitário ao mesmo tempo que volta a um período anterior da história que facilmente pode ser identificado como algo entre o final do século XX e o começo do século XXI. O mundo pré-Gilead muito se assemelha ao nosso momento histórico: marchas feministas pró aborto, mulheres que trabalham e tem filhos, mulheres que trancam a suas casas por medo de serem estupradas, homens que praticam feminicídio, dentro muitos outros aspectos do cotidiano patriarcal.
O principal motivador para a constituição desse regime fascista é a diminuição da taxa de natalidade, algo que vem ocorrendo na atualidade principalmente em países nortistas mais desenvolvidos, se relacionando com a autonomia da mulher e sua independência. Ainda assim, muitas mulheres assumem uma dupla jornada de ser mãe e ter um emprego fora do lar.
A Folha de São Paulo fez uma matéria bastante polêmica sobre mães que tem passado mais tempos com seus filhos durante o período de isolamento social. A matéria em si romantiza o papel de ser mãe vinte quatro horas por dia e exalta o trabalho doméstico das mulheres, o que é possível fazer uma alusão ao conto da aia, reforçando a ideia de que a mulher foi feita para procriar e para trabalhar em casa.
Vale ressaltar que não estou aqui para criticar as “donas de casa” que muito fazem por suas famílias e que formalmente não tem direito a aposentadoria nem a algo parecido, consistindo na naturalização dessa tarefa árdua que é cuidar do lar.
Uma das entrevistadas diz que está com trabalho acumulado e muitas falam da exaustão de cuidar dos filhos ainda que seja gratificante. Em nenhum momento a reportagem cita o pai, pressupondo que os pais não convivem na mesma casa ou que o pai “não ajuda” na criação dos filhos. O que é extremamente errôneo já que a educação deveria ser de ambos e não uma ajuda por uma das partes. A responsabilidade não deveria ser apenas da mulher uma vez que em geral as mulheres não escolhem ser mães solteiras.
A matéria invisibiliza as mães que perderam ou pediram para sair do emprego para ficar com os filhos, uma vez que a situação do isolamento social fechou escolas e creches forçando que as mães cuidem de seus filhos vinte quatro horas por dia, muitas vezes não tendo o auxilio afetivo e financeiro dos progenitores do sexo masculino, arcando sozinha com essas questões em meio a uma pandemia. Obviamente não estou criticando o fechamento dessas escolas porque é uma questão de saúde pública, porém esse fato refletiu nas rotinas das famílias, principalmente aquelas que tem crianças e reforçou o esteriótipo patriarcal esvaziando mais uma vez a responsabilidade masculina para com a criação dos filhos.
Portanto, ser mãe na contemporaneidade é um paradoxo porque ao mesmo tempo em que isso é cobrado das mulheres para validar um sucesso na vida também se faz necessário arcar com as consequências, assim como diz o ditado: “quem pariu Matheus que balance.” Ou seja, a mulher é pressionada a ser perfeita em todos os ambientes, tanto profissional quanto pessoal, sendo a procriação e a criação dos filhos " a galinha dos ovos de ouro", algo que “O conto da aia” coloca em superexposição e que a matéria da Folha reforça de maneira negativa. Gilead está mais próximo do que imaginamos, principalmente com a mistura desse contexto com a exaltação das ideias fascistas e dos fundamentalismos neopetencostais, é preciso estar atento.
REFERÊNCIAS:
Matéria da Folha de São Paulo: < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/criancas-ganham-mais-tempo-com-as-maes-na-quarentena.shtml>
Livro: O conto da aia, Margaret Atwood, editora Rocco, 2017.
Imagem da capa: <https://oultimosemeador.com.br/wp-content/uploads/2019/07/hotfacts_handmaidstale_hero.jpg>