Um pouco mais de um mês depois do decreto de isolamento social, ainda que a contragosto do presidente da república, penso no meme do Drauzio Varela “solidão né minha filha?” e em como as pequenas coisas começam a ter um significado ainda maior do que tinham quando estávamos na normalidade.
Gostaria de frisar que isso que chamo aqui de normalidade, não considero normal. Compactuando com Ailton Krenak em “O amanhã não está a venda”, uma vez que antes do coronavírus a humanidade estava destruindo o planeta com queimadas, descarte de resíduos na natureza e muitos estavam se submetendo a jornadas de trabalhos exaustivas. Então será que voltar a esse normal seria saudável? Será que o normal realmente deve ser naturalizado como normal? Ou nenhum normal deve ser naturalizado?
Atualmente estou na metade do livro “O conto da aia”, distopia de Margaret Atwood que foi inspiração para o enredo da série homônima de muito sucesso ao redor do mundo. No livro, a personagem principal sente saudades da normalidade antes daquele regime, pequenas coisas como tocar uma folha de papel, sentir o cheiro de um perfume, tomar café.
Nesse período, nessa realidade quase distópica de 2020, sair de casa passou a ser algo fora do normal, mesmo que feito em ocasião de extrema necessidade. Existe um medo ao estar na rua, como se o tempo inteiro o vírus estivesse esperando para atacar como um soldado que vigia um corpo subversivo, assim como se sente a Aia no regime totalitário a que está submetida.
Relaciono essa perspectiva com o que Giorgio Agamben expôs sobre o cerceamento de liberdades em meio a pandemia, ideias que soam extremamente radicais e que podem ser lidas a partir do viés negacionista. O intelectual compara o número de mortos em anos anteriores na Itália com as estatísticas de mortes por COVID-19 na Itália. ¹
É perigoso corroborar com Agamben quando se vive no Brasil, uma vez que o governo federal nega a pandemia e legitima a necropolítica em prol da manutenção de uma economia, mesmo não possuindo credibilidade para exigir tal coisa.
Apesar de controversa e radical, a perspectiva do intelectual faz todo o sentido ao pensar no cerceamento dos corpos como uma medida totalitária. Afinal o isolamento social, ainda que justificável por vários órgãos sanitários e o de maior importância a OMS (organização mundial de saúde), beira o cárcere privado. Algo que se torna ainda mais problemático quando os governos imputam penas para quem quebrar a quarentena. Reforçando essa ideia do Estado totalitário e restringindo as liberdades ainda que seja em prol de um coletivo.
No caso do Brasil, no entanto, a preocupação é com a falta de fiscalização. Se na Itália e no contexto dos países que adotaram o lockdown tem beirado ao totalitarismo, aqui no maior país da América do Sul o afrouxamento das regulamentações de saúde é quem tem posto a população em perigo. Uma excessiva liberdade talvez, se é que ter o livre direito de ir e vir em meio a pandemia pode ser considerado liberdade já que cada individuo pode se tornar uma arma de contaminação.
Desse debate ficam alguns questionamentos para pensar durante e pós pandemia: qual é o limite do Estado sobre os corpos dos cidadãos que nele residem? O quanto as relações sociais irão mudar tanto no sentido ecológico quanto no sentido econômico? Será que alguma coisa de fato mudará? E enquanto não obtivermos respostas fiquemos com o meme do Drauzio Varela e com um saudades do que era normal, ainda que esse normal tenha sido problemático.
¹ https://jornalggn.com.br/noticia/novas-reflexoes-por-giorgio-agamben/
Fonte da imagem: https://www.facebook.com/neminhafilha/photos/a.105879004395065/105879834394982/?type=1&theater