O reality show The Circle Brasil (Netflix) apresenta um jogo no qual os participantes se mudam para um prédio e interagem por uma plataforma virtual acionada por comando de voz. O objetivo do jogo é colocar os jogadores em interação virtual e o mais popular vence o jogo. Nas regras do reality é permitido criar perfis fakes com descrição de personalidades e histórias de vida destoantes da vida real. No The Circle não existe barreira entre mentira e verdade. O que existe é um objetivo comum: ser popular e se tornar um influencer com poder de bloquear (eliminar) do jogo outros participantes.
Os participantes postam fotos e interagem em grupos pela plataforma The Circle. No restante do tempo é possível observar cada jogador com um caderninho anotando dados sobre os outros jogadores e confabulando individualmente sobre como se tornar popular no jogo. O The Circle é uma paródia da vida real contemporânea. Afinal, quem nunca publicou fotos e postou frases de efeito a fim de ganhar like, prestígio e visibilidade? A linguagem da internet chama de “biscoiteiro” o sujeito que está sempre postando algo com o intuito claro de receber elogio. Em deboche as pessoas falam “fulano pediu um biscoito”. Mas eu me pergunto: existe rede social para além de uma extrema vontade de ser querido e desejado? O narcisismo da contemporaneidade se expressa de maneira muito explícita por meio desse desejo insaciável de “ganhar um biscoito”.
Um observador atento ao se debruçar sobre o instagram por algum tempo vai notar o seguinte fenômeno: pessoas maquiando a realidade para serem bem quistas na internet, afinal, todo mundo nessa rede social é lindo, engraçado, bem vestido e bem pago. Ao passar 10 minutos nas redes sociais eu tenho a sensação de ser a única pessoa com dívidas, cravos, estrias e problemas familiares. As pessoas (me incluo nesse grupo) querem “vender” o melhor de si, talvez para suprir uma carência de afeto, ou quem sabe para satisfazer uma vaidade egocêntrica, com isso criamos um mundo virtual extremamente desumano permeado por uma felicidade artificial, plástica, irreal e mentirosa que não condiz com a vida propriamente dita.
A música popular brasileira nos adverte: “é que Narciso acha feio o que não é espelho” (composição de Caetano Veloso, Sampa). Por isso perdemos tanto tempo vendo e revendo os nossos próprios stories? O mito de Narciso está, ao meu ver, entre as histórias mais interessantes da mitologia grega. Tirésias é conhecido como o adivinho das narrativas mitológicas da Grécia Antiga. Quando Narciso nasceu esse grande sábio com poderes premonitórios lançou a sentença do seu destino: ele terá vida longa se nunca contemplar a própria face. O tempo passou e Narciso cresceu sendo o mais belo de toda Grécia. No entanto, o jovem carregava consigo o martírio de não poder contemplar à própria beleza. O fim de Narciso é trágico, um dia ao se debruçar sobre a límpida fonte de Téspias para sanar a sede, viu o reflexo do seu rosto no rio, se apaixonou por si mesmo e num átimo de loucura se afoga em busca do belo perfeito. Narciso pode ser compreendido como um símbolo daquele que permanece em si mesmo e por isso morre por não conseguir sair de si. Ovídio narra por meio da poesia em suas Metamorfoses (OVÍDIO, apud, BRANDÃO, p. 180, 1987):
Deitou-se e tentando matar a sede,
Outra mais forte achou. Enquanto bebia,
Viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem.
Julga corpo, o que é a sombra, e a sombra adora.
Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar (...)
Voltando ao The Circle, ao perceber os fenômenos de convivência gerados pela interação exclusivamente virtual eu pude refletir sobre o quão vaidosa e egocêntrica tem se tornado a nossa relação com as redes sociais. No jogo, os participantes estavam a todo momento calculando as palavras, imagens e reações de acordo com o objetivo de chamar atenção para si, em torno do desejo de se tornarem influencers. Para alguns jogadores, o espontâneo perdeu espaço para a reprodução de uma artificialidade milimetricamente moldada. Narciso e The Circle me fizeram refletir sobre quão frágil é o nosso ego, sobre o quanto a vida virtual está distante de representar a totalidade de uma pessoa e sobre o quão perigoso é voltar-se sobre si mesmo e permanecer por muito tempo idolatrando o próprio ser.
Referências:
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega: volume II. Petrópolis: Vozes, 1987.
Referência da imagem:
https://spinoff.com.br/saiba-quem-ganha-o-the-circle-brasil-da-netflix/